C. Caç. 4246/73 - Angola, junho de 1974 a setembro 1975
A Companhia de Caçadores 4246/73, era uma companhia Independente, que se formou no RI 2 – Regimento de Infantaria nº. 2 em Abrantes e transferiu-se para o Campo Militar de Santa Margarida, uma estrutura militar construída em 1953, para ali proceder à logística e realizar o IAO – Instrução de Aperfeiçoamento Operacional, com vista a cumprir uma comissão de serviço na Região Militar da então província ultramarina de Angola.
A C.Caç. 4246/73, foi uma de duas companhias independentes a participar, ativamente, na revolução dos cravos, a 25 de abril de 1974.
Por se tratar de uma companhia Independente, toda a ação operacional da C. Caç.4246/73, era da responsabilidade do Comandante da Companhia, Christian Bastos Andersen, um tenente que viria a ser promovido a capitão, poucos dias antes do embarque para aquela missão de serviço em Angola, obedecendo, naturalmente, às instruções recebidas dos comandos nacionais, regionais e territoriais.
Capítulo I
A
partida para Angola esteve agendada para maio de 1974, contudo, como a C.
Caç.4246/73, que servi como escriturário, foi uma das duas únicas companhias
independentes a participar ativamente nas operações militares do dia da
liberdade a 25 de abril de 1974, a mesma foi adiada para junho. As instruções
recebidas indicavam que o embarque iria acontecer no dia 7 de junho. Até lá,
realizaram-se todos os preparativos, nomeadamente, exames médicos, consultas e
tratamentos da saúde oral, toma de vacinas contra a malária (Paludismo), febre
amarela e outras potenciais doenças tropicais. Curiosamente, eu que estava no
posto médico a dar o apoio logístico aos médicos e enfermeiros, acabei por não
fazer exames médicos, ter recebido as vacinas e não ter feito o tratamento de
saúde oral. Felizmente, durante o período que estive em Angola não tive
qualquer problema de saúde. Apenas fui vítima da “flor do congo” (eczema de origem fúngica). Numa
linguagem mais acessível, nós os militares identificávamos a “flor do congo”
como uma doença de pele (micose) que atacava as virilhas e
partes genitais. Para combater a doença usei todo o tipo de produtos que os
enfermeiros me receitavam, um dos quais tintura de iodo. Este tratamento, por
tintura de iodo, para além de não ter ajudado a melhorar, fez com que a pele
saltasse e andasse, pelo menos durante dois/três dias, com as pernas
escanchadas (ligeiramente abertas). Era horrível e propiciava uma imagem
caricata, quando tinha que me deslocar. Só consegui curar essa micose,
definitivamente, alguns anos depois, após consultar um médico que,
curiosamente, fez o serviço militar em Gago Coutinho - Leste de Angola.
Entretanto, depois de ultrapassada toda a burocracia que uma viagem de avião, para 122 pessoas implica, do dia 5 de junho saímos do Campo Militar de Santa Margarida, rumo a Lisboa e ao Quartel da Pontinha, onde pernoitamos dois dias. Nestes dois dias, a aguardar avião, aproveitamos para passarmos algumas horas com os nossos familiares e amigos. Ao início da noite do dia 7 de junho, por volta das 19 horas, saímos do Regimento de Engenharia nº. 1 da Pontinha, em autocarros militares, em direção ao Aeroporto Figo Maduro. Passamos por uma manifestação do MRPP, que entre outras coisas reivindicava, com palavras de ordem, que “nem mais um militar para as colónias”. De facto, de nada valeram as reivindicações que quase todos os partidos políticos faziam naquele período, pós-revolução. Nós próprios chegamos a acreditar que a nossa comissão de serviço em Angola iria ficar sem efeito. Como se confirmou, não foi o que aconteceu.
Após o
check-in, subimos para a aeronave, sensivelmente, por volta das 23 horas,
mantivemo-nos a aguardar dentro do aparelho até que tudo ficasse em condições
de podermos levantar voo. Como a viagem só teve lugar depois da meia noite, bem
próximo da uma da madrugada, verdadeiramente a nossa partida ocorreu já no dia
8 de junho. A Companhia de Caçadores
4246/73 seguiu rumo a Luanda, num avião dos TAM – Transportes Aéreos Militares,
com muita esperança na bagagem de podermos cumprir a missão que nos estava
confiada e regressarmos em perfeitas condições físicas e de saúde:
A
Companhia de Caçadores 4246/73 era composta por cinco oficiais: um capitão e
quatro alferes milicianos, um primeiro sargento, responsável pela secretaria,
dezasseis furriéis, com várias especialidades, trinta e um primeiros cabo,
igualmente com várias especialidades e sessenta e nove soldados, num total de
122 homens, aos quais se iriam juntar 44 soldados nascidos e formados em
Angola.
Na hora da
partida era notório que nenhum dos 122 elementos da companhia estaria nas
melhores condições psicológicas. Na curta viagem entre a Pontinha e o aeroporto
era visível no rosto de cada qual os diferentes estados de espírito. Na entrada
para a aeronave, era por demais evidente o nervosismo, revelado em cada
movimento e ação. Alguns havia que se manifestavam de forma silenciosa e
recatada, outros, numa clara exteriorização de euforia, que mais não era que
tentar esconder as emoções do momento. O desconhecido e a missão que nos
esperava não deixava nenhuma margem de conforto.
Partimos
do aeroporto Figo Maduro em Tires, num Boeing 707 dos TAM – Transportes Aéreos
Militares, por volta da 01h00 da manhã, no dia 8 de junho e chegamos a Luanda
por volta das 9 da manhã. Foram cerca de 8 horas de voo, aproveitadas pela
grande maioria, para descansar ou mesmo dormir.
No
aeroporto internacional de Luanda, estavam várias viaturas militares Berliet à
nossa espera. Depois da descarga e carga da bagagem de cada qual, subimos para
as viaturas militares que nos transportaram para o Campo Militar do Grafanil,
uma estrutura militar, localizada a cerca de 7 quilómetros de Luanda, na
estrada de Catete, atualmente transformada em Instituto Superior Técnico
Militar e Escola Superior da Guerra.


CAPITULO
II
Abrantes, onde tudo começou.

Em Abrantes, no RI 2, fui colocado a 16 de dezembro de 1973, depois de ter feito o curso de escriturário, no RAL 4 em Leiria, um curso com vários sub-cursos, nomeadamente: secretariado, escrituração militar, datilografia e SPM - Serviço Postal Militar. Comecei por servir na CCS – Companhia de Comando e Serviços do Regimento, mas, no dia 4 de janeiro de 1974, fui transferido para o DRM – Distrito de Recrutamento e Mobilização Nº. 2 em Abrantes, no centro da cidade, tendo sido integrado na 4ª Repartição. Nesta, o meu serviço passava por dar baixa de todos os ex-militares que se encontravam na reserva e que, por terem completado 45 anos de idade deixavam de ter esse estatuto. Foi um trabalho que gostei de executar, quase todo ele feito à mão, não necessitando da máquina de escrever. Esta usava-a apenas para notificar algumas juntas de freguesia ou comandos locais da GNR ou PSP, a propósito de se saber o paradeiro ou situação de alguns ex-militares.
No DRM tínhamos sido colocados três novos escriturários, distribuídos pelas diferentes repartições. Os três tínhamos uma relação muito boa, que, de forma carinhosa nos tratávamos por “Ribas, no meu caso, o Almeida de Rio Tinto por “Bigas” – por ter um bigode bem volumoso e o Pacheco, por “Guimas” por ser natural de Guimarães.
Como o DRM Nº. 2 funcionava das 9 até as 17 horas (horário de repartição pública) as horas que sobravam passávamos sempre juntos. O Pelicano, o café e pastelaria mais emblemático daquela cidade, na época, tinha que nos aturar todos os dias, depois das refeições do almoço e jantar.
O DRM nº. 2 funcionava como uma repartição publica, com horário da 9 às 17, com intervalo de uma hora para almoço. As nossas refeições eram fornecidas pelo RI 2. Pelas 13 horas e pelas 18h30, vinha uma viatura do quartel com a alimentação dos três e mais quatro soldados que tinham a função de ordenança de cada repartição e fazer a guarda das instalações. Havia um quarto/camarata, ao lado das secretarias, onde dormíamos os três mais os outros militares. Havia mais uns quantos cabos escriturários, que já lá estavam há algum tempo, mas tinham o estatuto de desarranchados, por serem da própria cidade ou de localidades vizinhas. Depois da hora de expediente só ficávamos os escriturários e os soldados da guarda. Naquela altura o estado estava a construir novas instalações para o DRM, numa rua paralela, uma vez que as que estávamos a utilizar estavam muito degradadas. Os serviços mudaram para o novo edifício quando nós estávamos em Santa Margarida, por isso já não as chegamos a conhecer.
Ao lado do edifício do DRM Nº. 2, que ocupava as instalações do
antigo Convento de Nossa Senhora da Esperança, funcionava o Colégio de Nossa
Senhora de Fátima, na atual Rua Ator Taborda, que recebia jovens internas para
ali estudarem. Era um colégio gerido por freiras. No tempo que lá prestei
serviço estava lá uma jovem do Fundão, que pertencia a uma família de
empresários ligados a toda a atividade para a agricultura, inclusive,
maquinaria de lavoura ou rega. Durante o período que servi nesta instituição, criamos um ritual, de logo pela manhã nos cumprimentarmos, eu da janela da minha repartição e ela de um varandim onde a maioria das alunas permaneciam entre intervalos de aula.
O Distrito
de Recrutamento e Mobilização nº. 2, em Abrantes foi constituído no ano de
1926, então designado de Distrito de Recrutamento e Reserva, em 1977, passou a
designar-se de Distrito de Recrutamento e Mobilização de Abrantes e foi extinto
no dia 14 de julho de 1993.
Os dias em
Abrantes não nos custavam a passar, mas estávamos sempre ansiosos que chegasse
a sexta-feira para podermos aproveitar o fim de semana com a nossa família e namorada.
Tínhamos tudo o que podíamos ter. O dinheiro que cada um tinha é que limitava
ou não as nossas opções para passar o tempo. Nos dias que houvesse cinema ou
outra atividade cultural, lá estaríamos nós. Aliás, foi após uma sessão de
cinema que eu e o Bigas tomamos conhecimento de que estávamos mobilizados para
Angola e Moçambique. Na altura tínhamos a convicção de que já não seriamos mobilizados
por termos conhecimento de que os batalhões de rendição, já estavam totalmente
constituídos, esquecemos que também havia Companhias Independentes que faziam,
igualmente, a rendição nas províncias ultramarinas. Na altura não tivemos
conhecimento de qual dos dois ia para Angola ou Moçambique, só no dia seguinte
chegou toda a informação. Eu iria ser integrado na Companhia Independente C.
Caç.4246/73 e tinha como destino Angola e o Bigas iria integrar uma outra
companhia Independente, a C.Caç. 4241/73, que tinha como destino Moçambique.

No dia 5 de fevereiro, ambos fomos promovidos a 1º cabo especialista e regressamos ao RI 2 para nos juntarmos às respetivas companhias. Verifiquei, mais tarde, que o meu nome já estava incluído no número de efetivos da C. Caç. 4246/73 desde o dia 4 de janeiro, ainda que só tivéssemos conhecimento desse facto no início do mês de fevereiro.
No Regimento de Infantaria nº. 2 estivemos a constituir Companhia durante três semanas, com os diferentes militares e especialidades a chegarem a conta gotas. O trabalho na secretaria, nesta fase do processo de constituir companhia, era imenso e muito exigente, para mim e sobretudo, para o meu chefe, o 1º Sargento Manuel Pinto, um homem sensacional.
O 1º
Sargento Manuel Pinto, era um militar do quadro, muito organizado, com um
conhecimento das matérias militares como havia poucos e com uma enorme
capacidade para ensinar, quem, como eu, nada percebia dos termos e linguagem
que se utilizavam nas forças armadas (uma coisa é o curso que tiramos e outra bem diferente é
saber executar na pratica o que em teoria nos ensinaram). Aprendi muito com
este Senhor, de Lamego, durante o período que convivemos, na metrópole e no
ultramar. Infelizmente, uma parte da comissão em Angola, não tive a sua
companhia, porque, em períodos diferentes – dois meses em cada período, teve
que regressar a Portugal devido ao facto das suas duas filhas terem sido
vítimas de uma doença rara, que lhes provocou a morte. As duas tinham uma
diferença de um ano e ambas pereceram quando atingiram os 12 anos de idade. Foi
uma tristeza imensa, que abalou por completo um homem que tinha uma postura
exemplar, mas que não deixava de ter um bom sentido de humor. Tudo se perdeu
com estes trágicos acontecimentos.
O trabalho
de secretaria era muito virado para os processos individuais de cada elemento
que fazia parte da companhia. Todos os dados, individuais e familiares, com
respetivos contactos, tinham que fazer parte do processo. Todos os dias tínhamos
que fazer um género de requisição com o número de militares que iriam almoçar e
jantar no dia seguinte, para entregarmos na cozinha do regimento. Este
documento tinha em separado os oficiais, os sargentos e restantes militares,
cabos e soldados. Era também uma das nossas atribuições tratar do correio da
companhia e fazer a sua distribuição, tratar das dispensas, para as saídas à
noite e nos fins de semana. As dispensas da noite podiam ser utilizadas logo a
partir das 18h30 para quem quisesse jantar fora. A hora de entrada no quartel,
quer nos dias úteis quer nos fins de semana, tinha que ser até à uma da manhã.
Ficamos em
Abrantes até meados de março de 1974, depois, toda a companhia foi transferida
para o Campo Militar de Santa Margarida.
CAPITULO
III

A estadia no Campo Militar de Santa Margarida tinha como objetivo principal, fazer o IAO – Instrução de Aperfeiçoamento Operacional, ou seja: preparar os militares operacionais para as tarefas de combate na forma de guerrilha, i.e. instrução em operações de contra-guerrilha. (a guerra no ultramar era traiçoeira, exatamente, por funcionar no sistema de guerrilha) e tratar de toda a logística necessária ao embarque e ao período que nos estava reservado na província ultramarina de Angola.
Em Santa
Margarida, as tarefas estavam todas muito bem definidas e bem agilizadas por todos os elementos que compunham a C.
Caç.4246/73. A companhia foi dividida em quatro pelotões, cada qual com o seu
comandante, os Aspirantes (ainda não tinham sido graduados em Alferes),
Martins, Fernandes, Sousa e Gravato, apoiados pelos Cabos Milicianos (ainda não
tinham sido graduados em Furriéis) Amorim, Fernandes, Batista, Guterres,
Salgueiro, Gonçalves, Peneda, Barroso, Freitas, Vaz, Pires e Gorgulho sob a
coordenação global do Tenente (ainda não tinha sido graduado em capitão)
Christian Andersen.
Como os
especialistas eram quadros de grande importância para o bom funcionamento da
companhia, não podemos deixar de enaltecer o papel que tiveram o responsável
pela nossa saúde, o Furriel Luís Viegas, que tinha sob o seu comando os 1ºs
Cabos auxiliares de enfermeiro, Gil Pereira, José Machado, Jorge Ferreira e o
Abílio Oliveira; o Furriel Carlos
Barbosa, que tinha a seu cargo as transmissões e tinha sob o seu comando os
1ºs. Cabos Guiberto Fernandes e António Babo;
o Furriel José Luís Campos, que tinha a responsabilidade do parque auto
e tinha sob o seu comando os 1ºs. Cabos Lino Fonseca, Júlio Carvalhão, Vítor
Ribeiro e Manuel Fajardo; e o homem que
tinha a preocupação de escolher o melhor para as nossas refeições, o Furriel
vagomestre Albano Lobo que tinha sob o seu comando os 1ºs. Cabo António Campos,
cozinheiro e o José Silva, padeiro.
Outras
especialidades de grande importância e que ainda não fiz referência, como os
Operadores Cripto, Jorge Silva e Arnaldo Guimarães, o Escriturário José Ribeiro
(eu) e o Corneteiro Luís Lemos, este, pela especificidade da sua especialidade,
destacou-se mais como responsável pelo bar dos graduados.
O Campo de
Instrução Militar, construído em 1952 (ano que coincidiu com o do nascimento de
quase todos os militares da nossa companhia), em Santa Margarida da Coutada, no
concelho de Constância, oferecia todas as condições para uma boa preparação
operacional dos militares. Não faltava espaço nem condições para executar todas
as tarefas. O CMSM era composto de:
6400 ha de Área Total; 350 ha de Área da Zona de
Aquartelamentos; 330 Edifícios, de entre os quais o quartel general, outros
edifícios de comando, casernas, refeitórios, meses, oficinas, salas de
convívio, igreja, cinema, etc; 1 Avenida Principal com 2,4 Km; 1 Pista de Aviação; 2 Heliportos; 4 Carreiras de Tiro de Armas Ligeiras; 1
Carreira de Tiro de Carros de Combate; 1 Carreira de Lançamento de Granadas; 1
Pista de Combate; Oficinas e depósito de armamento composto de 7 paióis.
Como o campo militar
tinha quase tudo o que era necessário para a ocupação de tempos fora do
serviço, foram raras as vezes que saímos à noite. Não tenho bem presente, mas
acho que só por uma vez jantamos no Tramagal e outra em Abrantes. A esta cidade
fomos mais duas ou três vezes no máximo. E íamos porque o Bigas, o meu
companheiro de secretaria da 4241 tinha carro e isso permitia-nos ter alguma
mobilidade. Na grande maioria do tempo que estivemos em Santa Margarida
passamos o nosso período de laser no bar ou sala de convívio, onde não faltavam
jogos como ténis de mesa, bilhares e snookers, matraquilhos e mesas de jogos de
cartas. Tínhamos também o cinema, sempre com filmes atualizados no tempo.
Não faltavam, como se
percebe, condições para nos entretermos e não faltavam condições para um bom
desempenho de todas as especialidades do ramo militar. Os nossos militares
operacionais eram sujeitos a grandes cargas de treino, sobre os mais diversos
cenários de guerrilha, desde manhã, bem cedo, até ao final da tarde. Labutavam
no duro, durante todos os dias da semana e em alguns dias ainda tinham a
complicada e exigente instrução noturna, acrescida de várias sessões de provas
físicas complementares, na preparação para as adversidades que se avizinhavam e
que se adivinhavam difíceis. Falamos de guerra de guerrilha.
Todos os setores da
companhia iriam passar por testes nunca antes vividos, desde os cozinheiros,
padeiros, telegrafistas, operadores Cripto, mecânicos ou condutores auto,
todos, sem exceção iriam experienciar coisas novas e muito complicadas de
executar e gerir. No nosso caso, tínhamos uma secretaria, que estava a ser
partilhada pelas duas companhias independentes, a nossa C.Caç.4246 e a C. Caç.
4241, equipada com o equipamento e mobiliário necessário, ou seja: quatro
secretárias, para chefes de secretaria e comandos e duas mesas de trabalho e de
dactilografia.
Foi durante o período de Instrução de Aperfeiçoamento Operacional
da nossa Companhia que se deu o “golpe” militar do 25 de abril.
25 de Abril de 1974
A
Companhia de Caçadores 4246/73 foi uma das unidades a participar ativamente nas
operações militares que haveriam de derrubar o regime político que vigorava há
cerca de 48 anos em Portugal e que estava em guerra com os Movimentos de
Libertação das diferentes províncias ultramarinas de Angola, Moçambique, Guiné,
Cabo Verde e Timor. O nosso comandante de companhia, Christian Bastos Andersen,
Tenente Miliciano, participou em algumas das reuniões que visavam o derrube do
regime político. O movimento dos capitães, robustecido por um número muito
significativo de oficiais milicianos surge na sequência dos movimentos que já
se vinham registando junto dos Oficiais do Quadro Permanente e saídos da
Academia Militar, como bem referiu, num dos seus muitos escritos, o Coronel
Sousa e Castro, um dos militares mais ativos no antes e após a revolução
dos cravos:
“ 9 de Setembro, uma data para ser lembrada”. Neste dia, em 1973,
reuniram-se em Alcáçovas, Monte Sobral, do rendeiro Celestino Garcia, um velho
republicano, 136 jovens oficiais do Exército Português, com as patentes de
alferes, tenentes, capitães, a maioria, e alguns majores;
A reunião, promovida por um pequeno
núcleo de oficiais da capital, tinha como objetivo explicito contestar a
legislação que o governo da ditadura havida produzido e que no entender dos
oficiais do Quadro Permanente oriundos da Academia Militar os prejudicava;
Logo de início, um reduzido número de oficiais entenderam que aquela seria uma excelente oportunidade para iniciar uma estratégia conspirativa tendente a derrubar a ditadura e resolver o problema colonial e do regime político;
Essa estratégia fica dramaticamente comprometida quando o governo da ditadura revoga toda a legislação contestada pelos "capitães" e decreta um chorudo aumento dos soldos, particularmente para a classe dos capitães;
E agora, como vai ser possível manter a chama conspirativa viva, é a interrogação do núcleo restrito dos conspiradores que preconizavam a ação armada para o derrube da ditadura;
É um conjunto de acontecimentos de natureza militar que oxigenam a conspiração, a alimentam e a tornam um movimento poderoso. O aparecimento dos misseis antiaéreos strella 7 no campo de batalha da Guiné, retirando a supremacia aérea às nossas tropas é o mais dramático;
A revolta dos brancos da cidade da Beira-Moçambique e o ataque que levam a cabo às tropas metropolitanas tiram todas as ilusões que restavam ainda, de uma solução pacifica e negociada para a mudança de regime. O golpe militar estava à vista e era imparável.”
Este testemunho do Ex-Coronel Sousa e Castro é bem elucidativo do que se começava a desenhar para que a revolução se concretizasse a 25 de abril de 1974.

Do lado da nossa Companhia, o Comandante Christian Bastos Andersen, que já tinha participado em algumas reuniões, pôde concluir que o movimento passava a ser composto pelos oficiais do Quadro Permanente e Oficiais Milicianos, todos com o objetivo de derrubar o governo, terminar com o regime que vigorava e acabar com a guerra nas colónias.
Para uma melhor compreensão do que se passou naquele período, deixo aqui o que foi a preparação e a ação da C. Caç. 4246/73 na revolução dos cravos, num testemunho, na primeira pessoa, do Comandante da nossa Companhia:
Naturalmente
que esta última semana antes do 25 de Abril foi de preparação do golpe e de nós
próprios. Embora nunca tenha tido consciência de ter manipulado os meus
soldados, contava desafia-los para virem comigo, esperando que alguns deles
assim o quisessem fazer e que os restantes se mantivessem calados e portanto,
foi natural que também nesta semana tivesse intensificado as discussões
políticas na Companhia.
Entretanto o
Cap. Luís Pessoa foi a uma reunião onde lhe confirmaram que a data mais
provável seria o dia 25 de Abril, a pré-confirmação seria dada pela emissão de
uma canção popular ”E depois do adeus” cantada pelo Paulo de Carvalho nos
Emissores Associados de Lisboa pelas 23h do dia 24 de Abril. Se essa canção
fosse para o ar deveríamos preparar tudo para começar a Revolução, cujo início
seria marcado pela agora famosíssima canção do Zeca Afonso “Grândola, vila
morena”. Ainda hoje fico emocionado quando a ouço! Era uma canção proibida pela
Censura e que sendo emitida pela Rádio Renascença pouco depois da meia noite
confirmaria que a Revolução não tinha sido abortada e, portanto, arrancaríamos.
A nossa ordem de marcha foi no sentido de ocuparmos a ponte de Vila Franca,
para impedir o Regime de a tomar e ao mesmo tempo impedir os tanques de
Santarém de chegar a Lisboa, caso eles não passassem para o nosso lado. A
companhia do Cap. Pessoa (ou os soldados que ele conseguisse convencer) iria
tomar os emissores do Porto Alto, centro de retransmissão, que estando nas
nossas mãos impediriam o Regime de falar pela Rádio para Portugal inteiro.
Confesso que senti uma pontinha de inveja com a missão aparentemente tão fácil
que lhe tinha cabido comparada com a nossa: enfrentar os tanques?! Também
fiquei a saber o nosso código rádio para falar com o nosso Comando na Pontinha:
Charlie 18. Fomos também avisados que as forças da GNR não estavam do nosso lado,
pressupondo-se que permaneceriam fiéis ao Regime e que poderiam opor-se à nossa
marcha para Lisboa.
Durante todo
o dia 24 os nervos foram imensos! Aproveitei para me informar como poderia
roubar as viaturas, rádios, munições e armas, pois todos estes equipamentos,
depois de cada dia de instrução eram entregues nos respetivos paióis e
armazéns. Nada ficava na nossa posse: consegui sonegar uma pistola – era todo o
armamento que eu tinha para fazer uma Revolução! – Verifiquei com enorme
apreensão que embora existissem bazucas em Sta. Margarida não havia munições
para elas. E as bazucas eram as únicas armas que eu conhecia capazes de parar
um tanque! Se de facto tivéssemos que abrir fogo contra os tanques, melhor
seria que o fizéssemos com fisgas, pois assim talvez os tanques se rissem de
nós e não dizimassem o meu pessoal. O Cap. Pessoa disse-me (talvez só para me
descansar) que nos iríamos encontrar na Ponte da Golegã com uma coluna, que
viria da Engenharia de Tancos e que levaria muita munição para nós.
Quando ouvi o
“E depois do adeus” chamei os graduados (que já dormiam) para lhes dizer que
iríamos ter uma instrução noturna pouco depois da meia-noite e que, portanto,
avisassem os seus soldados para estarem prontos pela meia-noite junto a uma
caserna. Colei o meu ouvido à telefonia com crescente nervosismo, até que pela
meia-noite e vinte lá apareceu o Grândola! Fiquei gelado: era agora. Já não
haveria retorno possível! Mas, como sempre acontece em momentos de ação,
passou-me o nervosismo: sabia o que tinha que fazer!
Dirigi-me ao
local onde os soldados e graduados me esperavam e falei-lhes explicando-lhes
que para mim tinha chegado a hora de me levantar contra este Regime e que iria
para Lisboa entrar numa Revolução! Quem quereria juntar-se a mim, avisando que
poderia ser uma semana complicada? Esperava que pelo menos uma dúzia se me
juntassem, mas aconteceu uma coisa inacreditável: todos deram um passo em
frente! A emoção tomou conta de mim, mas ao mesmo tempo um medo enorme: para
onde estava eu a arrastar todos estes jovens? Graças a Deus estava escuro e
eles não puderam ver bem a minha cara! O único que não foi connosco foi o 1º
Sargento Pinto, porque achei que sendo ele profissional eu não tinha o direito
de lhe dar cabo da carreira, caso a Revolução não vingasse. Tenho a impressão
que nunca me perdoou eu não o ter chamado.
Não havia
tempo para grandes dúvidas: fui ao parque das viaturas e disse ao soldado que
vinha levantar viaturas para uma instrução noturna. Ele não acreditou, porque
não tinha ordem nenhuma nesse sentido: onde estava a minha autorização?
Mostrei-lhe a minha pistola e ele considerou que seria uma autorização
suficiente! As viaturas capazes de sair eram muito poucas e por isso lá fomos
120 pessoas penduradas em meia dúzia de viaturas arrombar os paióis e armazéns
de onde tirámos as G3, granadas, rádios, rações de combate, etc…
Lá arrancámos
para Lisboa, já seriam uma duas e meia da manhã, sem grandes incidentes, até à
Ponte da Golegã, onde nos encontraríamos com a Grande Força da Engenharia cheia
de oficiais superiores, soldados a valer e sobretudo: muitas armas e munições
antitanque! Todos estes sonhos nos deram algum descanso! E de facto começámos a
vislumbrar uma longa procissão de faróis ao longo da ponte, talvez umas 40
viaturas: eram eles! Estávamos safos!
Quando
pararam ao nosso lado eu não queria acreditar: as Berliets vinham quase vazias
de pessoal (ao todo seriam talvez uns 20) e quanto às tais munições antitanque,
nada! Apenas tinham trazido bastantes cunhetes de munição para G3, da qual já
tínhamos bastante.
Não havia
tempo para lamentações e eu não queria que os soldados sentissem a fraca
organização em que estávamos envolvidos. Lá seguimos para Vila Franca. Pelo
caminho os GNR não nos hostilizaram, pelo contrário, os poucos que vimos
ajudaram a nossa marcha regulando o pouco trânsito que havia àquela hora.
Chegámos à
portagem da Ponte de Vila Franca ao alvorecer.
O dispositivo
foi montado, tendo em conta que não tinha mais para opor aos tanques do G3.
Entretanto achei melhor acabar com as portagens, para evitar algum eventual
engarrafamento. Detetámos um oficial superior da aviação dentro de um VW: era o
comandante da base do Montijo (salvo erro…) e que decidi que ficasse ali
“preso”, sobretudo incomunicável, o que suportou com razoável bonomia: julgo
que já teria sabido de qualquer coisa, pois não ficou nada preocupado.
Pelas 10h fui
contactado, via rádio, que o movimento praticamente não estava a ter oposição e
que algumas unidades mais já tinham passado para o nosso lado, incluindo os
tanques de Santarém. Uf! Que alívio!
Devo dizer
que embora a portagem da ponte de Vila Franca Xira não fosse zona própria para
piões, começaram a aparecer algumas dezenas de civis, que queriam saber o que
estávamos ali a fazer, e que depois de se lhes ter sido dito que era uma
revolução para derrubar o regime, o seu apoio foi bastante generalizado e
inequívoco, embora ainda com algum temor.
Pelas 11h
recebemos ordem para irmos ocupar o Aeroporto, pois a EPI de Mafra não teria
efetivos capazes de o fazer em condições. Assim fizemos, juntámos o pessoal
todo e arrancámos em direção a Lisboa.
À entrada em
Lisboa, junto ao atual Ralis (naquela altura a autoestrada não estava tão
rebaixada, nem existiam aqueles viadutos e o Ralis dava diretamente para o fim
da autoestrada) estava montada uma barricada para nos impedir de passar! Não
fiquei muito preocupado apesar de ser um obstáculo inesperado (o Comando
tinha-nos dito que não sabia de nenhum impedimento na marcha para Lisboa), o
que é facto é que a forma como a barragem estava montada era completamente
inútil para impedir uma coluna com a dimensão da nossa: 20 a 30 militares
armados de G3 com duas viaturas atravessadas nas duas faixas, as quais nem
sequer tapavam completamente a nossa passagem. Era um proforma de quem estava a
cumprir alguma ordem, que não lhe apetecia nada seguir: era uma barricada para
fingir que se tinha feito alguma coisa. Os soldados que iam comigo na viatura
mostraram as armas com prontidão, enquanto que os militares da barragem nem nos
apontaram as suas armas.
Dirigiu-se-me
um aspirante que, suponho, estaria a comandar aquele grupo de militares e
estabeleceu-se o seguinte diálogo:
Tenho ordens
para não deixar passar – disse ele
E eu tenho
ordens para passar! – disse eu
Não serei eu
que o vou impedir – disse o aspirante em voz um pouco mais baixa.
No entanto,
embora tudo aquilo me parecesse um faz-de-conta, achei que haveria mais do que
aquela força e não queria arriscar arrancar e, de dentro do quartel e bem
melhor protegidos do que aqueles militares em pé ali na rua, alguém começasse a
fazer fogo. Dirigi-me ao aspirante:
Recebes
ordens de quem?
Do meu
Coronel.
E onde está
ele?
Está ali
junto ao muro do quartel do lado de dentro.
Então vamos
falar com ele! – disse eu.
Lá fomos os
dois a pé, com 5 ou 6 dos meus soldados, até ao muro e o tal comandante estava
dentro duma guarita. Só lhe via os olhos! Tive a sensação de estar a falar com
alguém entalado dentro de um marco do correio! Com ele tive esta conversa:
Então meu
coronel, o que se passa?
Tenho ordens
para não deixar ninguém passar para Lisboa e, portanto, não pode passar!
E eu tenho
ordens para passar e vou passar!
Mas tem
ordens de quem?
Do Comando da
Revolução!
Ele calou-se
um pouco e disse qualquer coisa do tipo: não recebi instruções para este caso.
Eu disse-lhe:
meu Coronel, vou passar a bem ou a mal e, se preza os seus soldados que estão
naquela barragem, é melhor dizer-lhes para se afastarem, e voltei-lhe as
costas, tentando aparentar uma calma que estava longe de sentir.
O aspirante
que voltou comigo estava todo entusiasmado. Disse-lhe só para afastar um pouco
as suas viaturas para nós podermos passar, o que fez prontamente, e nós
seguimos para o Aeroporto. Este episódio, nessa mesma altura, fez-me sentir que
o Regime estava podre e que ninguém se iria opor decididamente à nossa
revolução. Pelo que fiquei bem mais descansado!
Chegados ao
Aeroporto, já lá estavam alguns militares (uma dúzia?), que ficaram
visivelmente muito aliviados quando viram chegar a minha Companhia. De facto,
eramos uma força considerável – bem mais de 100 militares – o que permitiria
montar um perímetro de segurança às pistas, torre de controlo e edifícios. A
pequena força que lá encontrámos, sendo poucos, tinha armamento bem melhor que
o nosso: entre outros, dois canhões sem recuo e com munições!
Pouco tempo
depois o oficial (da EPI?) que estava na torre de controlo veio avisar-me que
se estavam a aproximar 2 aviões vindos de Tancos, provavelmente cheios de
paraquedistas, os quais ainda não se sabia de que lado estariam. Fiquei muito
preocupado: se os aviões estivessem cheios, teriam o dobro dos nossos efetivos
e com um treino operacional muito superior ao nosso. Se os deixasse aterrar
estávamos vencidos, com um número de mortos certamente elevado! Só vi uma
hipótese: colocar os canhões no alinhamento da pista e fazer explodir os aviões
ainda em fase de aterragem. Enquanto estava discutindo esta hipótese com o tal
oficial, chegou a notícia, logo depois confirmada pelo Comando, que eles
estavam do nosso lado. Graças a Deus! Lá aterraram e apareceram umas viaturas
que os levaram. Quando o seu Comandante me cumprimentou eu até corei só de
lembrar o que lhe estava a preparar, do que julgo que ele nunca teve
conhecimento.
Permanecemos
no Aeroporto, julgo eu, todo o resto do dia 25, como o 26 e até o 27. Foi aqui
que fomos tendo notícias do desenrolar dos acontecimentos: prisão do Américo
Tomaz e rendição do Marcelo Caetano ao Spínola. O aparecimento do General
Spínola neste episódio foi-me muito surpreendente, pois sabia que não só o MFA
não pretendia ser liderado por ele, como ele não se tinha mostrado muito
interessado. Só mais tarde é que vim a saber da história da rendição do Marcelo
no quartel do Carmo.
Durante estes
dias em que estivemos no Aeroporto muita gente veio festejar, gritar pela
Revolução. Enfim a Revolução estava claramente ganha, o Regime tinha caído e a
alegria tinha tomado conta dos portugueses. Posso dizer que julgo que nunca
comemos tão bem na tropa como enquanto aqui estivemos, tantos eram os presentes
e apoios que recebemos. Lembro-me que os festejos terão tomado uma dimensão
talvez exagerada, que temi perder o controlo da Companhia. Mas enfim nesta fase
a prontidão militar já não seria tão prioritária e os meus rapazes, depois de
tanta tensão pelo que passaram, bem mereciam alguma recompensa. Como se a
glorificação de todos os populares que ali foram fosse pouco, soube
posteriormente que algumas senhoras entusiasmadíssimas, também decidiram
festejar com alguns dos meus soldados de modo bastante mais íntimo. E viva a
Revolução!”
Este
testemunho do nosso comandante, deixa claro que os preparativos e toda a ação
da Companhia de Caçadores 4246/73, foi executada de forma muito rudimentar,
mas, claramente, com muita eficácia. Pode dizer-se que numa desorganização
evidente, de alguma forma previsível e compreensível, tudo acabou por funcionar
muito bem!
Enquanto
decorria a revolução, com o grosso dos efetivos da Companhia nela evolvidos, os
militares não operacionais, ficaram no Campo Militar de Santa Margarida e como
o segredo da operação era a alma do negócio ... os que ficaram não sabiam bem o
que estava a acontecer mas, depois de terem tomado conhecimento de que estava a
decorrer uma revolução para derrubar o governo e o regime, foram ocupar os seus
postos, pois havia funções para desempenhar.
No nosso
caso, a noite do dia anterior e o dia 25 de abril foram passados desta forma:
“A noite de 24 para 25 de Abril de 1974 não foi uma
noite como todas as outras, mas também não foi muito diferente. Todos
nós ocupamos o nosso tempo livre de forma muito igual ao dos dias
anteriores: os sportinguistas a verem o seu clube jogar para atingir as
meias-finais de uma competição europeia e os não sportinguistas a entreterem-se
entre o cinema, a sala dos militares ou uma saída fugaz até ao Tramagal ou
mesmo Abrantes, as localidades mais próximas de Santa Margarida, onde estávamos
aquartelados a fazer o IAO - Instrução de Aperfeiçoamento Operacional para uma
missão em Angola. A diferença começou a notar-se quando constatamos
a presença do nosso comandante e de todos os restantes oficiais da Companhia.
Esta situação só era normal quando se encontrava agendada uma qualquer
instrução noturna, que não era o caso. Porém, como a Companhia estava a
preparar-se, em termos operacionais, para a guerra no ultramar, uma vez que
estávamos mobilizados para ir para Angola, podia ser razoável que se
realizasse uma sessão noturna, não prevista.
Cerca das 23h45 um dos oficiais da companhia dirigiu-se à caserna, juntamente com alguns dos futuros furriéis (na altura ainda Cabos Milicianos), acordando todos os militares e informando-os que se tinham que preparar para uma sessão operacional. Como era normal nestas ocasiões, assistiu-se a um burburinho muito intenso e com muitas interrogações à mistura: “o que é que nos estará reservado para esta noite?” – a instrução noturna era dos exercícios mais exigentes, não apenas pela própria exigência do exercício, mas sobretudo pelos locais, orograficamente muito sinuosos e terrivelmente desgastantes, que tinham que percorrer – A novidade nessa noite foi terem recebido, juntamente com a G3 (espingarda automática), cartucheiras com bala real.
No meu caso e de mais meia dúzia de militares, que não tinham que acompanhar estes exercícios operacionais, a noite só foi perturbada pelo natural movimento e tenção que se notava em todos os nossos companheiros operacionais e apenas até à sua saída para a suposta instrução noturna.
O que restou da noite, para os não operacionais, foi de uma total tranquilidade e sono profundo. De manhã, após a alvorada, a nossa grande surpresa foi não termos notado qualquer movimento ou ruído a partir da caserna. Achamos estranho os nossos camaradas não terem regressado da instrução noturna. Não era normal, mas nada fazia supor que a razão era bem diferente daquela que acabou por se verificar. Aquela meia dúzia de militares, não operacionais, que ficaram no quartel, seguiram a sua rotina normal, com o desfazer a barba, o banho e a toma do pequeno almoço e, no meu caso, pelas 9 da manhã abrir a secretaria para dar início a mais um dia de trabalho. Foi quando estávamos a tomar o pequeno almoço que tomamos conhecimento do que se estava a passar. A televisão não deixava de passar imagens das grandes movimentações militares em Lisboa e das intenções dos que prepararam a revolução.
Embora não tivéssemos conhecimento da presença da nossa companhia nesta revolução, percebemos que o facto de não terem regressado da suposta instrução noturna se podia estar a dever a uma adesão ao movimento das forças armadas.
Pouco depois de ter aberto a secretaria, chegou o meu chefe, Sargento Pinto, já com muita informação sobre o que estava a acontecer. Foi nessa altura que tomei conhecimento de que a nossa Companhia, comandada pelo Tenente Christian Bastos Andersen, tinha aderido ao movimento e tinha como principal missão evitar que os tanques do quartel de Santarém passassem pela Ponte Marechal Carmona, em Vila Franca de Xira, rumo a Lisboa, numa eventual contrarrevolução. Ficamos a saber que os tanques de Santarém também tinham aderido ao movimento das forças armadas, deixando de fazer sentido que a nossa companhia permanecesse em Vila Franca quando estava a ser necessária numa outra tarefa, também ela muito importante, no aeroporto de Lisboa, para onde se dirigiram ainda nessa manhã e onde estiveram durante três/quatro dias a coordenar todas as ações do aeroporto.
Como o meu chefe era militar profissional
achou por bem que, para salvaguardar a sua posição de militar do quadro e, para
o caso do processo revolucionário ainda vir a falhar, devia levantar autos
a todos e a cada um dos militares da Companhia, com funções de chefia,
(graduados) que estavam a participar na revolução. Ele, desse modo, ficava
devidamente protegido perante as chefias, embora, pessoalmente, concordasse com
a ação que os capitães estavam a tomar.
Foi por isso que passei a manhã do dia 25 de Abril de 1974 agarrado a uma máquina de escrever “Messa”, a datilografar, nas legais folhas azuis de 25 linhas, um texto que em síntese, apontava para a desonra e traição à pátria de todos os meus camaradas graduados. Como depois se veio a verificar, foi um trabalho inglório porque a revolução foi consumada e o meu chefe mandou-me destruir os autos.
Na parte da tarde, quando já se sabia que
não iria haver retrocesso no processo do MFA, o meu chefe libertou-me e
aproveitei para vir até ao Fundão. Era dia de feira anual e, por outro lado,
sentia uma natural curiosidade sobre como estavam os fundanenses a viver o dia
da libertação do nosso país.
Para chegar ao Fundão apanhei três
boleias, uma primeira de Santa Margarida até ao Rossio al Sul do Tejo, uma
segunda, deste local até Castelo Branco e uma terceira desde a capital de
distrito até à minha terra. No Fundão percebi, nas poucas horas que lá estive,
que as pessoas estavam satisfeitas com o que se estava a passar e percebi,
também, que os grupos organizados e que trabalhavam na clandestinidade, como o
MDP-CDE tentavam mobilizar as pessoas para as reivindicações que aquele
Movimento sempre preconizou e que foram expostas nas eleições de 1969 e 1973,
ainda que de forma muito básica, visto não haver permissão para grandes
campanhas dos movimentos oposicionistas do regime.
No dia seguinte, pelas 7 da manhã, apanhei o comboio
que me iria levar até Santa Margarida, cheguei pelas 11h30 e não havia sinal do
meu chefe. Tinha-se deslocado ao comando de Tomar, para ser instruído sobre o
que estava a acontecer nas forças armadas.
Foi assim o meu dia, no dia 25 de Abril de 1974.”
O país, naqueles primeiros dias depois da revolução, estava a viver dias complicados, com os portugueses a reivindicar o que nunca tinham tido, nos 48 anos antecedentes. As reivindicações eram sobre as mais diferentes atividades da sociedade nacional. Passou a haver algumas atitudes que não dignificavam quem as praticava e dirigidas a pessoas que, ou faziam parte do anterior poder político ou eram empresários e que não ofereciam as condições básicas a que com eles trabalhava. Também os diferentes partidos políticos, constituídos nessa ocasião, se guerrilhavam com excessiva agressividade, contribuindo de forma negativa para as naturais fissuras na sociedade portuguesa.
Entretanto, a nossa companhia, ainda que tivesse francas esperanças de que já não tinha que ir para Angola, continuou a fazer a sua preparação dentro do plano que estava previamente traçado, até que ...
CAPíTULO IV - Angola, o destino
Dia 8 de Junho, a C. Caç. 4246/73 embarcou com destino a Luanda para uma comissão de serviço na Região Militar Leste. A saída do aeroporto Figo Maduro em Tires ocorreu por volta da uma da manhã, numa aeronave dos TAM – Transportes Aéreos Militares e chegamos ao aeroporto internacional de Luanda entre as 8 e as 9 horas da manhã.

Depois da habitual burocracia e da recolha dos nossos pertences, subimos para as viaturas militares que já se encontravam no local à nossa espera e fomos direitos ao Campo de Instrução Militar do Grafanil, a estrutura que serve de transição a todas as unidades que chegavam ou partiam da Região Militar de Angola. O nosso estado de espírito era péssimo. Pela nossa cabeça passava tudo o que era mau. Por acaso, tinha à minha espera, para me cumprimentar e para combinar o que seria o nosso primeiro dia em Luanda, um amigo de infância, que prestava o serviço militar na CCS do Regimento de Comandos. Fiquei mais animado.
Uma vez chegados ao Grafanil, depois de ultrapassada a logística de quem chega, nomeadamente a que se relaciona com o local onde se vai pernoitar nos dias que ali tínhamos que ficar, preparei tudo para, a meio da tarde deste primeiro dia em Angola, sair com esse meu amigo de infância, que já estava em comissão de serviço no regimento de comandos, como escriturário da CCS, há cerca de meio ano.
Nesse final de tarde e noite passei a conhecer
um pouco de Luanda, fui jantar com esse meu amigo e mais uns quantos amigos
dele, também militares. Lembro-me de ter gostado muito do jantar – não recordo
o nome do restaurante – mas não gostei mesmo nada da cerveja. Provei todas as
marcas que havia no restaurante, mas decididamente o meu paladar não se deu com
nenhuma delas. Lembro que me senti envergonhado por ter passado a ideia de
menino mimado, que não gosta de cerveja. Acabei por acompanhar a refeição com
um sumo. Nessa noite dormi no quarto desse meu amigo, numa cama de outro
militar que se encontrava de férias no Puto. Esse meu amigo estava
desarranchado, ou seja: deixou de
fazer as suas refeições e dormir no quartel, por consentimento dos seus
superiores e por isso tinha um quarto cá fora, que partilhava com outros
militares que não gostavam de ficar no quartel.
O cansaço
era muito, visto não ter descansado quase nada na viagem de avião e ter tido
uma manhã e inicio da tarde muito ocupada com a logística da companhia, mas o
sono, que era muito, era perturbado por aquilo que eu pensava serem relâmpagos.
De manhã, quando nos levantamos, ao queixar-me que tinha dormido mal por causa
dos relâmpagos, o meu amigo disse-me que não tinha havido trovoada durante a
noite, o que tinha ouvido eram as bolas do bowling a rolarem nos tapetes da
sala de jogo que ficava mesmo por baixo dos quartos.
De manhã
apanhei um táxi para o Grafanil, juntei-me ao meu Chefe, 1º Sargento Manuel
Pinto, tratamos do que era necessário e a meio da tarde fui ter com o meu amigo
ao Regimento de Comandos. Ele saia pelas 17 horas e este horário permitia-lhe
ter um part-time num dos cinemas da cidade. Enquanto esperava pela saída dele, apreciei
o que um pelotão de comandos estava a fazer para finalizar o dia de instrução
militar. Ficou-me na retina que, estando o pelotão todo perfilado, houve um ou
dois que não responderam corretamente ao exercício que o oficial, comandante do
pelotão, lhes pedia e por isso, todo o pelotão teve que pagar (foram
castigados). Foi ali que percebi que havia quem tivesse capacidade, depois de
um dia muito exigente, como era a instrução dos comandos, de fazer 80 cangurus
seguidos e sem falhas. (cangurus é o termo usado para um exercício militar que
consiste em saltar o mais alto que for capaz e baixar-se de seguida: Flexão e extensão de pernas com salto).
Eu teria caído para o lado se tivesse que fazer aquele exercício, os militares
que o acabaram de fazer pareceu-nos que não lhes custou muito, porque logo a
seguir foi dada ordem para destroçar e todos correram alegremente no sentido da
caserna como se nada tivessem feito.
Nesse dia,
o meu amigo, que estava desarranchado e por isso autorizado a fazer as suas refeições
e dormir fora do quartel e que lhe permitia ter um part-time, estava de serviço
no bar de um cinema da cidade e por isso só deu para jantarmos e eu, depois,
aproveitei para ir ao cinema. No final voltei para o Grafanil, onde passei a
noite pela primeira vez com os meus camaradas. No dia a seguir preparamos tudo
para a viagem que nos aguardava rumo ao leste de Angola.
Para
percorrer os cerca de 1.800 quilómetros, numa viagem épica, que nos levou a
atravessar Angola desde o atlântico até à fronteira com a Zâmbia, mais
concretamente, ao destacamento da colina do Nengo, um local situado a cerca de
30 km da Vila de Gago Coutinho (Lumbala N’Guimbo) tivemos que usar três tipos
de transporte. Primeiro em MVL, camiões de carga, depois passamos para um
comboio movido a vapor e terminamos, de novo, em MVL. O que era o MVL:
Em
Angola, por falta de uma estrutura capaz de responder às necessidades de
militares e civis, foi necessário constituir uma base logística que resultou na
criação do MVL, em Luanda, para permitir reabastecer as diferentes unidades
militares, espalhadas por todo o país, dos bens que cada um necessitasse.
A
base logística de Luanda criou um movimento de viaturas pesadas, conhecidas por
MVL (Movimento de Viaturas Logística), que funcionava em grupo e eram
protegidos por militares qualificados. Dali saiam, de 15 em 15 dias, uma grande
coluna com várias dezenas de camiões, militares e civis, que circulavam em
comboio, para os mais distantes pontos do país, carregados com os bens que cada
unidade militar necessitava, bem como a correspondência de cada SPM (Serviço
Postal Militar). Cada viatura tinha um destino pré-definido. Com estes
constrangimentos, impostos para uma melhor segurança de todos, os militares
fora de Luanda só recebiam correspondência dos familiares e amigos mais ou
menos de 15 em 15 dias.
Depois
de descarregados, os camiões permaneciam nas unidades onde haviam procedido à
descarga dos bens, até que o MVL voltasse a passar para que nele fossem
reintegrados e regressassem de novo a Luanda. Se algum civil desejasse viajar
na sua viatura para uma zona de guerra, só o podia fazer integrando neste
movimento.

De Luanda saímos na madrugada do dia 11 de junho, em MVL, rumo a Nova Lisboa (Huambo). Apesar de haver um trajeto mais direto para Nova Lisboa, o facto de seguirmos integrados em MVL, o movimento de viaturas, tínhamos que seguir pelo trajeto que melhor pudesse servir todas as unidades militares que ficassem no percurso previamente delineado, dai que o trajeto tenha sido por Viana, Catete, Dondo, Salazar (N’Dalatando), … e daqui para Nova Lisboa (Huambo).
Em razão dos desvios que houve necessidade de fazer, tivemos que percorrer muito mais de 750 quilómetros, por estradas, todas asfaltadas, mas ainda sem pontes edificadas.

As muitas pontes que havia no trajeto eram em madeira, de largura estreita e fabrico muito rudimentar, que provocava a natural necessidade de os camiões as atravessarem com o máximo dos cuidados. E porque o número de viaturas era elevado, algumas dezenas, as horas de viagem foram substancialmente aumentadas, apesar dos motoristas, habituados que estavam àquelas condições, não abrandarem em demasia o andamento.
Naturalmente, tivemos que parar uma série de vezes, para as refeições e para as necessidades fisiológicas.
As refeições nada mais eram do que rações de combate. Foram distribuídas caixas com uma quantidade razoável de enlatados, umas bolachas que bem pareciam de água e sal, mas que não tinha mesmo nada a ver. Eram mesmo deslavadas. A minha maior dificuldade era mesmo abrir os enlatados. Os abre latas que vinham junto, era um objeto que nunca consegui manipular muito bem, felizmente havia companheiros que se entendiam perfeitamente com aquele pequeno dispositivo.
Numa das paragens efetuadas, havia uma grande extensão de terreno, diria, alguns quilómetros, com cultura de ananás/abacaxi. Deu para comer e levar alguns para outras refeições. Chegamos a Nova Lisboa já de noite, fomos instalados no RI 21, Regimento de Infantaria nº. 21, onde jantamos e pernoitamos. Ainda deu para uma saída noturna para visitarmos uma parte da cidade, juntamente com outros companheiros.
Chegamos
ao Luso (Luena), província do Moxico, Zona Militar do Leste, a meio da manhã do
dia 13. Para prosseguir viagem tivemos que aguardar pela chegada do MVL, por
isso, ficamos com o dia totalmente livre, que aproveitamos para conhecer a
cidade. Pernoitamos no BTR 522 e no dia seguinte, voltamos a carregar os nossos
pertences nos camiões e lá seguimos rumo ao Nengo para substituir a Companhia
de Artilharia 3514. Separava-nos do nosso destino, cerca de 400 quilómetros.
Como
sempre acontecia, a viagem para Gago Coutinho (Lumbala N’Guimbo), foi
programada para sairmos o mais cedo possível, até porque o MVL tem horários
para cumprir. Recorde-se que o Movimento de Viaturas Logístico, vai deixando
nos vários aquartelamentos, por onde passava, os camiões que transportam os
bens necessários a cada uma dessas unidades militares e esses camiões e os seus
condutores só de lá podiam sair quando o Movimento voltasse a passar, no
sentido inverso, para que juntos regressassem a Luanda.
O nosso
desejo era, sem qualquer dúvida, chegar o mais rapidamente possível ao nosso
destino. Já tínhamos muitas horas de viagem e nenhuma com o mínimo dos
confortos e, embora todos fossemos muito jovens o cansaço começava a
apoderar-se de nós, ainda que se tratasse mais de um cansaço mental que físico.
Lá
partimos rumo ao desconhecido por volta das 9 da manhã. Aguardava-nos uma
viagem que iria ter uma duração de mais seis a sete horas. As paragens é que
iriam determinar o tempo que iríamos gastar na viagem. Naquela altura nas
nossas cabeças passavam os mais variados cenários do que nos esperava, quer em
termos de acomodações, quer em logística.
Durante a
viagem notamos que nesta zona de Angola existe uma imensidão de primatas que se
exibiam nas árvores à beira da estrada. Foi algo divertido ver os macacos a
saltares de galho em galho, até para amenizar o nosso estado de espírito.
Também na beira da estrada podiam-se ver, em número muito significativo,
cabaças. Elas nascem e crescem naqueles locais de forma espontânea.
A cerca de
50 quilómetros do nosso destino tivemos a receção de boas vindas por parte dos
militares da companhia que iríamos render, a C. ART 3514, os “Panteras Negras”
como gostavam de se chamar. Eram umas 5 ou 6 viaturas pesadas, cheias de
militares, que usavam divisas trocadas para nos confundir e que nos escoltaram
até ao nosso destino. – Riam-se perdidamente quando algum de nós batia
continência a alguém que não tinha a patente que exibiam –. Naturalmente, como
sempre acontecia e deve continuar a acontecer, no serviço militar, os velhinhos
chamavam-nos de maçaricos e tentavam enganar-nos sobre os mais diferentes
pretextos. No caso da C. ART 3514, que estiveram em Angola 27 meses e que
construíram as poucas infraestruturas que ali existiam, nomeadamente as
instalações para os graduados e cabos especialistas dormirem, o bar dos
graduados e a secretaria. –Estas instalações foram construídas com os bidões
vazios de alcatrão que a Tecnil usava na construção das estradas. – Eram
instalações rudimentares, mas era melhor que dormir em tendas de campanha, como
aconteceu com eles próprios nos primeiros meses de comissão de serviço.
A passagem
por Gago Coutinho (Lumbala N’Guimbo) foi de festa para eles e de mais dúvidas
para nós. A vila era muito pequena, com meia dúzia de edifícios e muitas
palhotas. Eram os Militares que se encontravam no quartel ocupado pelo Batalhão
de Artilharia 6320 que davam vida à
vila.
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Apesar de
já estarmos no nosso habitat, ao jantar continuamos a comer ração de combate,
visto que a cozinha ainda estava ocupada pela C.ART 3514. Apenas os nossos
graduados tiveram direito a comer juntamente com os graduados daquela
companhia.
A
Companhia de Artilharia 3514, que esteve em comissão de serviço em Angola 27 meses,
já tinha tudo preparado para partir na manhã do dia seguinte, exatamente nas
mesmas viaturas MVL, que nos haviam levado para o Nengo. A propósito da
despedida deste lugar, os militares da CART 3514 cantaram-nos uma marcha para
nos encher de moral. Em tom de superioridade, cantaram os seguintes versos:
Os Maçaricos vão gostar de morar;
Nas casernas que vamos deixar
Vamos embora eles ficam sós
Fartos desta guerra já estamos nós
Aqui vai a Artilharia
A marchar sem parar
Ai se chega aquele dia
E nunca mais aqui voltar
Os Maçaricos vão gostar de morar;
Nas casernas que vamos deixar
Vamos embora eles ficam sós
Fartos desta guerra já estamos nós
Do Ninda para o Chiúme
Passa-se á curva da morte
Para sobreviver 27 Meses
Foi preciso muita Sorte
Os Maçaricos vão gostar de morar;
Nas casernas que vamos deixar
Vamos embora eles ficam sós
Fartos desta guerra já estamos nós
No dia seguinte, os Panteras Negros partiram e nós ficamos como
queríamos, com a nossa própria estratégia, no aconchego do nosso “lar”.
A companhia que a C. Caç. 4246/73 foi substituir no dia 14 de junho de 1974, na colina do Rio Nengo a C.Art.3514, que chegou a este local em 1972, com todo o espaço destinado ao destacamento coberto de mato. O que conseguimos apurar foi que a primeira ação tomada foi limpar o espaço e instalar as tendas de campanha onde funcionavam todos os serviços e aposentos.
Como as condições não eram as adequadas, um grupo de militares desta companhia decidiu propor construir um aquartelamento mais acolhedor e funcional. Colocava-se a questão da manipulação do terreno. A companhia não tinha máquinas de terraplanagem e isso era um problema, até que o assunto foi colocado aos responsáveis da Tecnil, a empresa que tinha a função de construir a estrada de Gago Coutinho para Ninda e fronteira da Zâmbia. Num determinado dia apareceram as máquinas que fizeram a terraplanagem do espaço, criando as condições para se começarem as construir as instalações fundamentais, aquelas que nós fomos ocupar, como: secretaria, casernas, refeitório, bar, oficinas auto, etc. Os materiais utilizados foram troncos de árvores cortadas nas matas envolventes e as paredes foram edificadas com chapas de bidons de alcatrão, depois de cortados e endireitados com os cilindros de compactação, o chão foi coberto por argamassa de cimento e os tetos com chapa ondulada de zinco, cobertos de capim para isolamento térmico. Esta técnica, de isolamento térmico, foi, como constatamos, utilizada nas paredes de chapa de algumas instalações, como zonas de descanso e refeitório.
Por falar em refeitório, devemos dizer que nem todos tomavam as refeições no refeitório geral, os especialistas criaram o seu próprio refeitório. Dois pipos, uma prancha em madeira e lá estávamos nós, os criptos e os telegrafistas a tomas as refeições. Era um lugar ao ar livre coberto por capim. De quando em vez passava por lá o “comboio do sessa” que mais não era que ventos fortes que levantavam uma poeira intensa. Para proteger os alimentos tínhamos que nos debruçar sobre os pratos para evitar comermos os alimentos com quantidades excecionais de pó.




Era na
secretaria que se faziam os planos semanais, para todas as tarefas a
desempenhar pelos 4 pelotões que compunham a companhia e era lá que se faziam
as Ordens de Serviço, que tinham que espelhar tudo o que se gerava na
companhia.
Os quartos
dos graduados e especialistas eram básicos, mas tinham as condições
necessárias. O meu quarto era partilhado por mais três companheiros, ficava ao lado
do bar dos graduados e tinha o essencial, bem como luz elétrica.
A C. Caç.
4246/73, nos três meses que esteve no Nengo, teve como missão proteger os
trabalhadores da Tecnil, a empresa que estava a construir as estradas de Gago
Coutinho para Ninda e de Gago Coutinho para Sessa. Para que essa proteção fosse
eficaz foi necessário deslocar três pelotões, constituídos por cerca de 35
efetivos cada, para outros tantos destacamentos. Um na povoação de Sessa, que
ficava a cerca de 120 quilómetros da sede (Nengo), comandado pelo Alferes
António Martins, outro em Ninda, comandado pelo Alferes Emanuel Gravato, que
ficava a cerca de 55 quilómetros da sede e um outro na Pedreira do Nengo,
comandado pelo Alferes Manuel Sousa, bem mais perto da sede, a cerca de 8 quilómetros.
No destacamento da Pedreira, fazia-se a proteção dos trabalhadores que tinha
como missão a exploração e desmonte de granito, britagem de inertes e central
de betuminosos para asfaltarem as estradas.
Na Colina
do Rio Nengo, o tempo disponível era muito, mas não havia muito como o
entreter, escrevíamos às namoradas, jogávamos às cartas, normalmente à lerpa, e
pouco mais podíamos fazer, não havia mesmo onde ocupar o tempo. O meu trabalho
na secretaria não me ocupava muito tempo, algum do que sobrava, cumpria-o a
escrever cartas a familiares, ou mesmo mulheres ou namoradas de alguns
companheiros, os que sentiam ter dificuldades de se expressar por escrito, mas
mesmo assim sobrava-me muito tempo, que eu aproveitava para escrever três e ás
vezes quatro aerogramas à minha namorada, mesmo sabendo que o correio só seguia
de 15 em 15 dias e, em alguns dias, jogava com os amigos. Havia dias que guardava para me deslocar ao
Rio, para tomar uma banhoca e para testar a minha pontaria, levava a arma que
me estava distribuída, a G3 e um carregador de balas. Normalmente, gastava um
carregador, vinte munições, com tiro ao alvo. Entendia que era necessário
manter-me treinado em matéria de tiro, visto que, não sendo operacional, tinha
que estar preparado para o desse e viesse. Por outro lado, como na recruta,
sempre fui um atirador de primeira, acho que se chamava de atirador especial,
eu queria manter esse estatuto.

Ninda, pertence ao município dos Bundas, com sede na vila de Gago Coutinho (Lumbala N’Guimbo) e Província do Moxico, fica próximo da fronteira com a Zâmbia e dista 85 quilómetros da sede do município.
Sessa era o destacamento que ficava mais longe do aquartelamento do Nengo, pertence, também, ao município dos Bundas, na Província do Moxico. Esta comuna angolana esta a 86 quilómetros de Gago Coutinho (Lumbala N’Guimbo)
Nem tudo foram rosas, a nossa estadia na Região Militar Leste.
Numa daquelas viagens de laser, que os militares do aquartelamento faziam ao
destacamento da Pedreira, ocorreu um acidente que mexeu com todos nós. Um grupo
foi fazer um jogo de futebol com os militares daquele destacamento e no
regresso, a Berliet deu um salto imprevisto na picada e o nosso companheiro,
ajudante de cozinheiro, Coriolano Gomes, foi projetado da viatura, sofrendo
lesões graves que o obrigou a ser evacuado, primeiro para o hospital central de
Luanda e depois para a metrópole.
A nossa missão, de proteger os trabalhadores da Técnil, foi quase sempre bem-sucedida, contudo, tivemos um revés, que agitou as hostes. Numa das poucas ocasiões que as viaturas da Técnil se deslocavam com trabalhadores, sem a proteção dos nossos operacionais, uma força da FNLA, disparou um RPJ contra a viatura, resultando daí a morte de 10 trabalhadores, totalmente carbonizados. Foi dos momentos de maior constrangimento por que passamos na nossa comissão de serviço em Angola.
A TECNIL tinha a sua sede na Vila de Gago Coutinho e tinha como responsável técnico administrativo de obra um fundanense, João Caixinha, que nós conhecíamos muito bem, mas com quem não tínhamos qualquer relação de amizade. Numa das visitas que fiz à vila, num qualquer fim de semana, encontrei-o, por mero acaso, e, naturalmente, fui cumprimenta-lo. Foi uma pequena festa – fazíamos sempre uma festa quando se encontravam conterrâneos – que terminou com um convite para voltar na semana seguinte para almoçar em sua casa. Como combinado, no domingo seguinte lá fui ter com o Caixinha, dirigi-me à secretaria da Técnil, o local que havíamos acordado para nos reencontrarmos e dai fomos para uma pequena estrutura, composta de um quarto, wc e o hall de entrada que servia, também de sala e cozinha. Foi um almoço muito agradável e a ementa foi uma galinha cozinhada por uma colaboradora africana, que estava deliciosa. Passamos um bom bocado da tarde, até os camaradas que também quiseram passar a tarde em Gago Coutinho se disporem a regressar ao Nengo. Acho que só nos voltamos a encontrar mais uma vez, ele lá ficou e eu e a minha companhia regressava a Luanda, contudo, alguns anos mais tarde encontrei-o nas instalações da empresa Casais, no Fundão, onde desempenhava funções idênticas, de Técnico administrativo das obras que a empresa tinha na Cova da Beira.
Como já foi salientado o aquartelamento da Colina do Rio Nengo, estava localizado a três quilómetros do rio que lhe dava o nome e entre as Vilas de Gago Coutinho (a 30 kms) e Ninda (a 55 kms). Como alguns camaradas referiam: “estamos no meio do nada”. Na verdade, nada havia num raio bem significativo, apenas mato e mais mato. Apesar da região estar repleta de guerreiros da UNITA e FNLA, nunca sentimos a sua presença física. Alguns camaradas testemunharam a presença de alguns desses guerreiros nas matas junto aos rios, mas nem uma única vez manifestaram quaisquer intenções de nos atacarem. Ao que conseguimos apurar mais tarde, quer os guerrilheiros da UNITA quer os da FNLA entendiam que a nossa missão não era de guerrilha, mas sim de proteção de trabalhadores que estavam a criam melhores condições para o progresso do país deles. Por isso, em situação alguma mostraram querer ser agressivos.
O aquartelamento não tinha vedações muito rigorosas, tinha inclusive muitas aberturas por onde saiamos a fim de nos aliviarmos no mato. No lado esquerdo, quando se entrava na unidade, eram as edificações, que tinham sido erguidas, como a cozinha, refeitório, acomodações de graduados e especialistas e bar dos graduados, que serviam de fronteira com o mato. O mesmo se verificava com o fundo do aquartelamento, onde os edifícios da secretaria e comando e aposentos dos oficiais, serviam esses limites fronteiriços. No lado direito as oficias auto, as tendas de campanha, onde se instalavam os soldados operacionais e a padaria eram vedadas por rede aramada. As tendas de campanha tinham uma dimensão razoável e que permitia que lá dormissem 12 dos nossos camaradas. Cada tenda tinha 6 beliches de duas camas.
Para a proteção de todo o espaço existiam quatro torres de vigia, onde, a partir das 19 horas havia militares em vigilância rotativa de 4 horas, até ás 7 da manhã, quando se procedia à alvorada e ao içar da bandeira. A função de içar e arriar da bandeira foi por mim exercida na grande maioria dos dias que estivemos no Nengo. Era um exercício que gostava de desempenhar. Gostava do som do clarim tocado por um dos vários corneteiros da companhia.
A nossa missão no leste de Angola estava a chegar ao fim. Recebemos ordem para deixar o aquartelamento e regressarmos a Luanda. A proteção da Técnil passava a ser feita pelo batalhão que estava estacionado na Vila de Gago Coutinho (Lumbala N’Guimbo). Com o aproximar da independência de Angola e das diligências que os políticos estavam a fazer juntos dos três movimentos de libertação, para a transição de poderes, deixou de fazer sentido manter o aquartelamento do Nengo, quando havia um batalhão que agora já não tinha que ter a preocupação das operações militares, podendo continuar a dar todo o apoio e proteção à empresa que estava a construir as estradas naquele território angolano, por isso, tivemos que desmantelar tudo na Colina do Rio Nengo. Tínhamos alguns dias para embalarmos todo o espólio da companhia. O MVL chegaria poucos dias depois. Quando chegou o MVL, as nossas próprias viaturas já estavam carregadas, faltando pouca coisa, que acabamos por carregar nas viaturas MVL e a 3 de setembro de 1974, partimos para Luanda.
A viagem de regresso à capital foi toda ela feita com as nossas próprias viaturas e mais uma meia dúzia de viatura do MVL (movimento de viaturas logístico). Do Nengo para Luanda, passamos por Gago Coutinho (Lumbala N’Gimbo) onde deixamos alguma da nossa logística, Luso (Luena), Henrique Teixeira (Saurimo) Malange, Salazar (N’Dalatando), Dondo e Luanda. Foram cerca de 1600 kms.
A viagem correu dentro do que estava projetado, com as paragens necessárias e com tempo ameno, nem muito calor nem arrefecimento excessivo, até que, a cerca de 40 kms de Malange começou a chover com grande intensidade e quando já estávamos muito próximos daquela localidade começaram relâmpagos e trovoada com tal violência, que metia pavor. Eu fiz a viagem numa viatura que transportava os colchões da companhia – acho que não era a única – sei que me aconcheguei debaixo de um dos colchões para evitar que aquelas imagens horrendas mexessem comigo de forma negativa. Felizmente, quer a chuva quer a trovoada não duraram muito tempo, não sei precisar, mas não mais de uma hora. Devo dizer que até hoje não presenciei trovoada com tamanha intensidade.
Nessa segunda noite de viagem, a maioria dos meus camaradas dormiu na unidade militar de Malange, mas eu preferi ficar na viatura, que estava estacionada dentro do aquartelamento, visto que tinha algum conforto, com os colchões e cobertores que transportávamos. No dia seguinte, logo pela manhã, depois do pequeno almoço, que nos foi servido pelo quartel daquela localidade, partimos para a última etapa, rumo a Luanda.
No dia 6 de setembro chegamos a Luanda e fomos instalados no quartel do ATmA – Agrupamento de Transmissões de Angola, como companhia de intervenção, integrada no COPLAD – Comando Operacional de Luanda. Um resumo, a tarefa que a C. Caç 4246/73 passava a ter era de policiar as zonas problemáticas de Luanda.
O quartel do ATmA tinha todas as condições, boas acomodações para os graduados, uma boa caserna, um bom refeitório, uma ótima secretaria e boas instalações para o comando. A secretaria era um espaço amplo, bem arejado e com muita luz natural. Tinha todas as condições para se trabalhar. Quem entrava na secretaria sentia e referia-se, com agrado, ao perfume a fruta. O cheiro a fruta passou a ser uma marca registada da nossa secretaria, na nossa passagem por aquele quartel. Todas as semanas comprava cinco abacaxis e um cacho de bananas com cerca de 20 bananas. Eram as bananas pintadinhas, já maduras, e por isso mais baratas. As quitandeiras instalavam as suas bancas mesmo em frente ao quartel e, por 10 escudos (agora 5 centavos) comprávamos 4 abacaxis e elas ofereciam um e por mais 2$50 um cacho de bananas. Como o jantar no quartel eram muito cedo, por volta das 18h30, quando chegávamos do cinema ou das nossas outras saídas noturnas, sabia bem comer um abacaxi ou umas bananas. Nunca mais comi tanta banana e abacaxi.
O Quartel da ATmA oferecia instalações onde dava gosto trabalhar, ainda que o rigor fosse uma imposição do comando. Tudo tinha que ser feito segundo os padrões militares. Para os períodos de lazer, o quartel oferecia uma boa sala de convívio, com vários jogos disponíveis, um campo de futebol, um ringue onde se podia jogar futebol de salão ou qualquer outro desporto, como basquetebol, andebol ou mesmo hóquei em patins e estava localizado numa zona da cidade que permitia ir a pé para quase todo o lado, restaurantes, bares, cinema e instalações de atividade desportiva.
Ao lado do quartel estavam as instalações do ASA, o clube dos supostos trabalhadores do aeroporto, que participava no campeonato nacional de futebol angolano. Acho que só lá fui uma vez a ver um jogo. Um pouco mais longe, estava o Ringue onde jogava o FC Vila Clotilde, as partidas do campeonato nacional de basquetebol. – Este clube que foi fundado em 1953 e era uma filial do Barreirense do Barreiro, só se dedicava a esta modalidade e o Ringue da altura, mantém ainda hoje toda a sua atividade com os escalões de formação, mas os jogos do campeonato angolano de séniores são agora disputados num pavilhão com capacidade para 1500 pessoas. – Quando ali havia jogo, o barulho dos adeptos fazia-se ouvir bem longe e muito mais em toda a zona envolvente. Para além do futebol esta era a modalidade que mais adeptos movimentava e tinha os adeptos muito fervorosos. Tive sempre muita curiosidade de ir ver jogos naquele recinto, mas nunca aconteceu.
O ATmA ficava ao lado do aeroporto de Luanda, local onde eu passava algum tempo. Ia lá tomar café, ainda que o café que ali se bebia não fosse grande coisa, depois do almoço e nos dias que não fosse ao cinema nas instalações da Força Aérea, era lá que me entretinha, a ver as pessoas que chegavam e as partiam dos aviões comerciais.
A alimentação na Unidade era muito boa, em qualidade e quantidade, com uma higiene que não era normal nos quartéis por onde já tinha passado. Foi no seu refeitório que passei a consoada do Natal de 1974. Foi uma refeição com tudo o que é tradicional, Batatas e couves com bacalhau e bolo rei como doce e mamão como fruta. No final da refeição, formaram-se vários grupos que saíram em direção à baixa de Luanda. A distância era significativa, mas nós tínhamos todo o tempo do mundo e o cansaço, para que tem vinte e um ou vinte e dois anos, não se fazia sentir. Pela meia noite, o grupo onde me incluía, com cerca de 10 camaradas, fomos tomar banho, todos nus, numa das praias da Ilha. Não havia ninguém, só mesmo nós. Aliás, nas ruas de Luanda, por onde passamos, não se via viva alma. Todos faziam a sua consoada no conforto das suas habitações. Também foi lá que passamos a noite de passagem de ano de 1974 para 1975.
Durante o período que estive no ATmA, tive oportunidade de ganhar uns trocos na Feira Popular que estava instalada bem próximo do aeroporto. Aos sábados de tarde, trabalhava num bar, das 14 às 18h30. O proprietário queria que ficasse para a noite, mas entendi, sempre, que o melhor era terminar pelas 18h30, desculpando-me que entrava de serviço às 20 horas. Os meus amigos que ficavam a trabalhar durante a noite, por duas vezes foram assaltados e ficaram sem o dinheiro que tinham ganho. Eu cobrava por aquelas horas 150 escudos, que na altura era bom dinheiro. Só para se ter uma ideia, uma refeição num restaurante custava cerca de 20 escudos.
No ATmA, pela sua localização, permitia ir muitas vezes ao cinema Miramar, ou outro que não o da força aérea. O da Força Aérea tinha ótimas condições, onde íamos, na grande maioria das vezes, mas faltava a componente feminina. As vezes que optávamos por ir ao Miramar, tinha como objetivo vermos o filme que estivesse em cartaz, mas, também, para apreciar a paisagem, leia-se: ver as "garinas" angolanas.
Nas nossas saídas noturnas, quase sempre optávamos por nos vestirmos à civil. Como não podíamos sair do quartel assim vestidos, contratei os serviços de uma senhora, que morava em frente ao quartel, para me lavar e passar a roupa e para me deixar mudar de vestuário em sua casa sempre que fosse de meu interesse trajar à civil. A senhora tinha a paciência de nos receber em sua casa quando saiamos do quartel e quando regressávamos, muitas vezes já depois da meia noite.
Algumas situações que hoje achamos engraçadas e que ocorreram no ATmA. Uma das obrigações que tínhamos neste quartel era formar para ir para o refeitório. Normalmente era eu quem apresentava a companhia ao oficial de dia. Só depois de apresentar a companhia é que o oficial mandava seguir para o refeitório. Num determinado dia tinha vestido as calças do fardamento nº. 1, o de saída e tinha uma T’Shirt branca, como não tinha à mão a camisa de saída, vesti um dólmen camuflado e coloquei o cinturão por cima. Quando apresentei a companhia o oficial de dia perguntou-me se estava no Biafra para me apresentar vestido daquela maneira. Realmente, foi uma imprudência de minha parte e uma escolha de mau gosto.
No único quartel em que tive que dormir na caserna, foi no ATmA, aqui o pessoal operacional levantava-se bastante cedo, por volta das 6h30, no meu caso, como só tinha que estar na secretaria pelas 9 horas, ficava mais algum tempo na cama. Como o dia em Luanda nascia muito cedo, pelas 5 da manhã e com sol muito intenso, a forma que encontrei para não ter aquela claridade a bater-me nos olhos era por a almofada por cima da cabeça e tapar-me totalmente com o lençol. Em duas ou três ocasiões, alguém necessitou falar comigo, mas, ainda que tivessem procurado na caserna, não me encontraram por estar todo enrolado na cama.
Estivemos no ATmA até fevereiro de 1975, mas, por decisão
superior, tivemos que deixar o bem bom para irmos ocupar as instalações daquela
que tinha sido a 4ª Repartição. É verdade que ficamos mais à vontade, sem o
rigor militarista do ATmA, mas perdemos a centralidade.
Aqui tudo voltava a ser executado pelo nosso pessoal. Os nossos cozinheiros e padeiros voltaram a ter que fazer a nossa alimentação e todo o trabalho dentro da Unidade era de nossa responsabilidade, ou seja, passamos a ser completamente autónomos em termos de logística.
As instalações da 4ª REP. ficavam na estrada de Catete, tinha em frente o cemitério de Santa Ana, ainda que a uma distância razoável vistos termos quatro faixas de rodagem e um largo com dimensões razoáveis, a separar-nos e ao lado tínhamos a Polícia Militar. Um pouco mais acima daquela estrada, a cerca de 2 quilómetros, estava o Jumbo. O primeiro grande hipermercado que conheci. Na metrópole ainda não tinha sido construído nenhuma grande superfície e Luanda já tinha uma com grande dimensão. Inicialmente havia de tudo para lá se comprar, mas depois, a partir de abril, já só havia produtos de primeira necessidade e mesmo estes racionados.
Nas instalações da 4ª REP. passamos por acontecimentos muitos diferenciados, desde ter rebentamentos de morteiros RPJs nas instalações, tiros e balas perdidas fatais, prisões de todo o tipo de bandidos, ladrões, violadores, etc., que acabavam por ser sovados e conduzidos à prisão e numa fase mais adiantada da nossa comissão de serviço, o nosso quartel serviu para acolher muitos portugueses, que vinham dos mais variados pontos de Angola e que ali ficavam a aguardar serem repatriados para Portugal, os chamados “retornados”, O quartel passou a ser um grande armazém de caixotes de madeira, de todas as dimensões, com os pertences dos referidos “retornados” que seriam transportados para o Porto de Luanda quando houvesse um barco para os levar para a metrópole. As nossas instalações passaram a ser partilhadas por famílias que aguardavam ser repatriadas. Estas viviam, durante esse período, em tendas de campanha instaladas na parada, em condições mesmo muito degradantes. Tivemos ocasião de conhecer famílias que, segundo nos confessaram, viviam em moradias de grande qualidade e que, devido à independência de Angola, que iria acontecer a 11 de novembro, tiveram que deixar tudo para trás.. Foi muito complicado viver e partilhar o nosso espaço com homens e mulheres de todas as idades e crianças, de ambos os sexos. Nem nós nem eles estávamos confortáveis.
Naquele período o estado português organizou uma ponte aérea para levar todos os portugueses que quisessem regressar à metrópole. As pessoas seguiam de avião e os bens seguiam de barco. A revolta que mais se evidenciava nas pessoas era terem pouca informação sobre quando tinham avião para regressar. Todos os dias eram vários os aviões que chegavam a Luanda e partiam cheios para Lisboa, mas nunca eram em números que pudesse satisfazer todos.
As operações da nossa companhia eram agora partilhadas com efetivos militares dos três Movimentos de Libertação de Angola, MPLA, UNITA e FNLA. As viaturas que saiam para patrulhamento eram comandadas por um dos nossos oficiais e por um furriel, que comandava uma secção de cinco dos nossos homens, os Movimentos incorporavam, cada um, três dos seus efetivos. Este sistema de patrulhamento funcionava bem, mas era difícil de gerir em termos de logística.
Após 10 meses de presença em Angola, pude vir gozar um período de 35 dias de férias a Portugal. Esses trinta e cinco dias serviram para matar saudades da família, da namorada e dos amigos. Permitiu ter uma ideia mais avalizada de como estava a processar-se a nova vida dos portugueses, um ano depois de ter acontecido a Revolução dos Cravos.
Como o período de férias foi de 26 de março a 30 de abril, permitiu-me, também, assistir às primeiras eleições livres em Portugal e ver a felicidade estampada no rosto das pessoas, aguardando, em filas intermináveis, a sua hora de votar nas pessoas que as iriam representar na Assembleia Constituinte.
No dia que cheguei de férias, fui colocar toda a minha bagagem no quartel e, de seguida, desloquei-me para o centro da cidade para entregar algumas encomendas a pessoas, naturais do Fundão e residentes em Luanda, enviadas, através de mim, por alguns familiares. Foi um dia que me pareceu normal e igual a tantos outros que vivenciei antes das minhas férias, só quê, quando ao final do dia pretendia regressar ao quartel deparo-me com uma situação que de todo não estava à espera. Ao mandar parar alguns táxis para me levar ao meu destino, todos os taxistas me diziam que não podiam fazer o serviço por que naquela zona estavam a acorrer grandes bombardeamentos entre os três movimentos de libertação. Estive das 18 às 21 horas a tentar arranjar meio de transporte para me levarem de regresso ao quartel, que ficava na estrada de Catete, mesmo em frente ao cemitério de Santa Ana, sem resultado. Passaram algumas viaturas militares que, apesar de lhes fazer sinal para pararem e lhes colocar o meu problema todas, com exceção de uma, pura e simplesmente não paravam. A que fez o favor de parar, o chefe de viatura e o próprio condutor não se mostraram disponíveis para me levarem e, em face dos regulamentos, não o podiam fazer por na altura trajar à civil. Ainda assim, lá os consegui convencer. Tive que me sentar entre os militares que seguiam na viatura, no lado da estrada, isto por que iríamos passar em frente a um quartel da Policia Militar e estes eram muito rigorosos no cumprimentos dos regulamentos militares.
Uma vez no quartel e, visto ter feito muitas horas seguidas sem descansar, decidi tomar um duche e ir dormir. O meu quarto era mesmo ao lado da secretaria. Entretanto, o Oficial de serviço, Alferes Fernandes disse-me que iria ocupar a minha secretária para escrever à sua namorada.
Cerca de duas horas depois, de ter adormecido, sou chamado para ajudar a tratar de uma ocorrência gravíssima. O oficial de serviço, que tinha ficado na minha secretária a escrever à sua namorada, uma dinamarquesa, deparou-se com uma bala perdida que se foi anichar na coluna de madeira que ficava nas suas costas e, ato continuo, levantou-se e deslocou-se à porta da secretaria para tentar perceber o que estava a acontecer e, ali chegado, foi atingido com uma bala na cabeça. Era mais um dos muitos projeteis perdidos disparados sabe-se lá de onde. Imediatamente tratei da documentação referente à evacuação do Alferes Alberto Fernandes, que entretanto, já tinha sido transportado para o hospital, em viatura da própria companhia, tendo enviado estafeta com a mensagem sobre o ocorrido, a dar conta da tragédia que nos havia batido à porta, aos nossos graduados, que dormiam fora do quartel. Todos moravam no mesmo prédio, em diferentes apartamentos partilhados.
Este facto criou em mim um tal estado de receio que, nessa mesma noite decidi deixar de dormir no meu habitual quarto e mudar-me para debaixo de um vão de escadas do edifício da 4ªRep., em local onde só cabia um colchão. No que restou daquela noite fatídica, tive sempre a sensação de que o nosso quarto, que tinha uma pequena janela para uma rua lateral, iria ser atacado a qualquer momento. A paranoia estava a tomar conta de mim e por isso, no dia seguinte mudei-me para o local referido.
Na manhã do dia seguinte, o primeiro dia de serviço após ter regressado de férias, levou-me a tomar outras decisões, que na altura achei da maior conveniência, uma delas foi de não sair do quartel, sob qualquer pretexto, até ter como garantia que a situação se havia alterado e que já era seguro sair. Como eu era o chefe de SPM- Serviço Postal Militar, que me obrigava a deslocar, diariamente, ao centro da cidade, prolonguei a credencial, que tinha emitido em nome do ordenança da secretaria, no meu período de férias, por forma a que fosse ele a continuar a levantar o correio da Companhia. Durante alguns dias passei por momentos de muito receio.
O episódio relatado não foi um acto isolado. Dez dias depois desta triste e trágica ocorrência, uma outra se verificou no nosso aquartelamento, com o rebentamento de um RPJ no nosso refeitório. As desavenças que sistematicamente se verificavam entre os três movimentos de libertação de Angola, que numa primeira fase se revelava com a troca de tiros, normalmente com balas tracejantes, que propiciava uma visão que mais parecia de fogo de artificio e direcionados, quase sempre, aos aquartelamentos dos movimentos opositores, agravaram-se e as agressões passaram a contar com armamento pesado e muito mais letal.
A partir de determinada altura, quer MPLA, quer UNITA e FNLA terão decidido aumentar a agressividade entre eles, passando a utilizar RPJs, armas antitanque (Rockets lançados por foguete, ou seja: granadas, tipo bazucas, disparadas por foguete). Estas granadas foguete eram disparadas de forma completamente indiscriminada, sem alvo pré-definido.
Nesse dia tivemos um a rebentar no nosso refeitório, poucos minutos faltavam para as 18 horas. As mesas estavam postas para o nosso jantar, que devia acontecer pelas 18h30. O RPJ destruiu totalmente o refeitório. Felizmente àquela hora não se encontrava ninguém naquele espaço.
Em razão desta ocorrência, o nosso jantar só aconteceu por volta das 22h30, no quartel da polícia militar, que ficava mesmo ao lado das nossas instalações. A demora deveu-se à necessidade do nosso vagomestre, Albano Lobo, ter que contactar a Manutenção Militar, a entidade que fornecia os bens para a confeção da alimentação dos militares; informar o que tinha acontecido; ultrapassar a burocracia que nestes casos sempre se colocam e receber os materiais para a confeção do nosso jantar. Por outro lado, havia também a necessidade de se fazer a limpeza do refeitório da Policia Militar - lavagem de pratos, talheres e copos, que tinham sido utilizados pelos militares daquela Unidade, a fim de nós os podermos utilizar e havia, também, o tempo necessário para a confeção da nossa comida -. A solução que a Manutenção Militar colocou ao nosso vagomestre foi de uma ementa de batatas com atum. Era uma refeição de fácil confeção, mas necessitava que se descascassem as batatas e esperar pelo tempo de cozedura, a operação mais morosa, por isso, os militares da companhia foram convocados, em número significativo, para descascar batatas. O tempo de espera, parecendo muito (4 horas) acabou por não ser de mais, tendo em conta o que foi necessário fazer para providenciar os bens alimentares necessários e a sua confeção. O problema era mesmo a fome que se tinha apoderado de todos nós. Curiosamente, ainda hoje gosto deste prato e sabe-me como nessa ocasião.
No dia seguinte, mais ou menos há mesma hora, novo RPJ rebentou nas nossas instalações, desta feita numa parede exterior da caserna. Fez uma fenda na parede, mas não impeditiva de poder ser utilizada.
Como em tudo na vida, não há nada que o tempo não resolva. Passado meia dúzia de dias voltei a fazer a vida normal, passando, inclusive, a dormir na minha cama e no meu quarto, ir ao SPM, à praia aos fins de semana e ao cinema, quase todos os dias.
A nossa estadia não teve apenas situações de tragédia, ou de maiores preocupações. Também tivemos situações muito agradáveis e divertidas.
Uma passagem divertida, por que passei na secretaria, foi quando um companheiro foi ao médico, por motivo de uma inflamação nos genitais e chega à secretaria, com aquela sua bem acentuada pronúncia do norte e diz: “Óh Ribeiro vê lá que o FdP do médico deve-me ter confundido com uma gaja, o cabrão, receitou-me esta pomada – mostrou-me a caixa – . O gajo nem viu qual era o problema e passou-me a receita. Na farmácia notei que os farmacêuticos cochichavam entre si e olhavam para mim com um certo sorriso a gozo, mas não entendi a razão. Agora, ao abrir o saco é que entendi. O gajo receitou-me o “vaginex”! Esta merda não tem como enganar, vaginex é para gajas !!! até tem aqui o dispositivo para as gajas meterem a pomada no pito. Ora, para que me serve isto”. Digo-lhe eu: mas já leste as instruções? “eu não e nem vou ler. Deixa ver! Li e percebi que a pomada tanto podia ser usada por mulheres como por homens, visto que o principal poder ativo era para o combate a inflamações fúngicas da pele incluindo pé de atleta, infeções fúngicas nas unhas, micoses ou coceira nos genitais, masculinos e femininos. O mal estava mesmo no nome que deram ao medicamento. Ele lá foi à sua vida, usou a pomada e dois ou três dias depois já não tinha qualquer inflamação. Mas o que eu me ri com este episódio.
Uma outra ocorrência que hoje acho muita piada, mas que na altura não achei piada nenhuma, foi quando o motorista Fulgêncio foi comigo ao SPM a Luanda e não ultrapassou os 20 kms hora. No dia anterior tinha-lhe chamado à atenção para o facto de ir com velocidade a mais e que isso podia acarretar-lhe ser penalizado pela policia militar e ou civil e eu, como chefe de viatura, também poder ser penalizado. Para contraria a minha chamada de atenção, fomos e regressamos a essa velocidade. Na altura não achei piada nenhuma, tendo-me chateado com ele, mas agora, que passaram muitos anos, não posso deixar de me rir dessa ocorrência.
Participação em reuniões do MFA, no Comando Regional de Luanda.
Por sugestão do meu chefe, 1º sargento Pinto, fui indicado, juntamente com o meu camarada Guiberto Fernandes, para representar a companhia nas reuniões da Comissão de Coordenação do Programa do MFA, juntamente com mais dois graduados, de entre os quais, o nosso comandante de companhia. Nas várias reuniões em que participei, apenas por uma vez pude intervir. Tinha chegado, poucos dias antes, da metrópole, onde tinha gozado um período de férias, tendo assistido às primeiras eleições livres no país, para a Assembleia Constituinte e foi sobre este tema que falei na reunião. Não sei que importância teve para os presentes, cerca de uma centena de militares de todas as patentes, mas, pelas intervenções que todos nós ouvíamos, os temas eram diversificados, mas com conteúdos que se assemelhavam ao meu, em termos de importância.
No dia 8 de junho de 1975 celebramos o 1º aniversário da nossa presença em Angola. Foi organizada uma festa de convívio entre todos os que compunham a companhia. Como todos nós nos contentávamos com pouco, o que tivemos nesse dia foi muito e bom, mas o que mais sobressaiu foi o companheirismo que todos manifestámos, desde o mais humilde ao mais rebelde, do soldado ao oficial, nesse dia, como em quase todos os outros.
Como já foi referido, os bens de primeira necessidade estavam a escassear em Luanda. Não havia quase nada nas prateleiras do hipermercado ou nas mercearias dos bairros, por isso, não me esqueço que muita vez tive que matar a fome com água. As refeições eram servidas muito cedo, pelas 18h30 e quase todos nós só nos deitávamos depois da meia noite. Nesse tempo não havia como matar a fome. Quando íamos ao cinema sempre comíamos um ou dois bolos e umas bejecas, mas quando tal não acontecia, e porque não tínhamos qualquer reserva de alimentação, tínhamos mesmo que beber água para enganar o estômago.
Como já
foi referido, a partir de determinado período da nossa comissão de serviço, o
nosso aquartelamento, junto da 4ª Rep, foi invadido por algumas famílias, vindas dos
mais variados pontos de Angola, que se refugiaram nas nossas instalações
enquanto aguardavam embarque para Portugal. Na altura estava a decorrer uma ponte
aérea entre Luanda e Portugal para fazer o repatriamento de todos os
portugueses que quisessem regressar a Portugal, que, por melhor organizada que
estivesse, não conseguia dar vazão às necessidades dos muitos milhares de
portugueses que pretendiam abandonar o território.
A decisão que
mais contribuiu para os portugueses abandonarem a província, ficou a dever-se
às perseguições de que passaram a ser alvo por parte de grupos radicais
devidamente organizados e que não só pilhavam o que podiam como chegavam a ter
comportamentos demasiado agressivos. Alguns desses grupos foram formados por
gente que já tinham sido empregados da mais inteira confiança, mas que, depois
de manipulados, se tornaram pessoas com comportamentos impróprios, radicais e que
de alguma forma racistas. A maioria eram trabalhadores do campo, com pouca
cultura ou escolaridade, que acabavam por se juntar aos movimentos de
libertação, mesmo que antes não se identificassem com as suas ideias políticas.
As lutas
que os três movimentos travavam entre si, com o único propósito de obter
vantagens sobre a descolonização, que já estava a decorrer e que teria o seu
epílogo a 11 de novembro de 1975, não ajudava em nada o processo de Independência.
As makas (lutas) entre eles eram diárias e cada vez mais violentas, o mais
forte, neste caso o MPLA, tirava todas as vantagens.
Esta
realidade conduziu a que uma grande maioria de portugueses achasse que não havia
condições de continuar a exercer as suas várias atividades naquele território.
A demora
no agendamento de viagem, deixava famílias inteiras numa completa revolta, a
praguejar contra quem fez o 25 de abril de 74 e os políticos que lhes
sucederam. Lamentavam vezes sem conta por a sua hora de repatriamento nunca
mais chegar.
Estas pessoas,
que tinham a sua vida completamente estabilizada nos mais variados pontos do
território e contribuíam com os seus negócios para o desenvolvimento do país, viram-se, de um momento para o outro, a viver
em condições muito precárias, partilhando todas as instalações sanitárias com
militares, a dormir em tendas de campanha e a fazerem os seus alimentos no meio
de uma parada que estava parcialmente ocupada com caixotes com os pertences
destas e outras pessoas e que aguardavam que fossem transportadas para o Porto
de Luanda a fim de serem enviados para Portugal, por via marítima.
Foi um
período que gerou um enorme constrangimento, não apenas para essas pessoas, a
quem se passou a chamar de “retornados” mas também para os militares
aquartelados. Havia senhoras de todas as idades, mas as mais jovens, não se
coibiam de usar vestimenta muito reduzidas, por vezes provocante, no meio de todos nós e isso mexia
com o nosso estado de espírito.
A nossa comissão de serviço estava a caminhar para o fim. O mês de
setembro seria o do regresso à metrópole.
Apesar da Companhia ter continuado a fazer patrulhamentos,
juntamente com os três movimentos, a maior tarefa que estava em agenda era a de
encaixotar os nossos pertences e algumas lembranças, que cada um de nós foi
adquirindo ao longo do tempo de comissão, nos muitos bazares que Luanda tinha.
Havia equipas a fazer esse trabalho, normalmente, os companheiros com mais
jeito para a carpintaria. Foram duas ou três semanas a tratar deste assunto.
A viagem de regresso da C. Caç. 4246/73 iria ser feita no Navio Niassa e estava marcada para o dia 10 de setembro. Com exceção do Comandante da Companhia, do 1º sargento, do 1º Cabo Escriturário, (nós próprios) e de um motorista, todos os restantes 114 militares que estavam a terminar a comissão de serviço, regressaram no Paquete Niassa, juntamente com os pertences de cada um e da própria companhia. Foram 13 dias de viagem e, segundo nos relataram, foi uma viagem bem dolorosa para alguns, por terem enjoado durante os 13 dias.
Como já referimos, quatro militares ficaram em Luanda a fazer a liquidatária da companhia, o Comandante Christian Andersen, o 1º sargento Manuel Pinto, o escriturário José Ribeiro (eu próprio) e o Motorista Pina Gonçalves. Os quatro executamos o trabalho de liquidatária em tempo record. Estava previsto serem necessários 15 dias, mas nós, ao cabo de seis dias completamos o serviço. É verdade que por já estar toda a tropa em processo de liquidatária tudo foi significativamente facilitado, mas o nosso trabalho teve que ser feito sem que soubéssemos que a verificação de documentos e materiais eram menos rigorosas.
Durante os sete dias que ficamos em Luanda, depois da Companhia
ter zarpado do porto de Luanda no Niassa, ficamos num quarto de um dos quartéis e, como
já não tínhamos direito a comer nas instalações militares, foi-nos dado
dinheiro para a alimentação do motorista Pina Gonçalves e para nós próprios.
Durante esse período os restaurantes, os poucos que ainda resistiam em ficar
abertos ao público, não tinham muita coisa para oferecer. Carne pouco havia e
já não colocavam nas ementas e peixe ainda havia algum, mas, como naquele tempo
peixe não era o alimento que mais apreciávamos o que mais comemos foram miúdos
de frango com batata frita. Miúdos era o que mais havia.
A nossa viagem de regresso a Portugal foi marcada para as 7 da
manhã do dia 16 de setembro de 1975, num avião 747 da TAP. Na noite do dia
anterior ainda tínhamos algum dinheiro, angolano, que de nada nos servia na
metrópole, por isso, depois do jantar, entramos numa barbearia, que vendia
lotaria da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa e compramos umas quantas
frações, com o objetivo de podermos rentabilizar o dinheiro que nos tinha sido distribuído. Não tivemos
sorte, porque nada nos saiu. Entretanto, deixamos ficar apenas
o dinheiro necessário para o nosso pequeno almoço do dia do embarque, tomado já
no aeroporto de Luanda.
Por volta das 16 horas, aterramos no aeroporto de Lisboa e, como
tinha o meu pai e a minha namorada à minha espera, parti de imediato para o
Fundão, onde estive até dia 23, data da chegada o Navio Niassa, com todos os
meus camaradas.
Na Doca de Alcântara fundeou, a 23
de setembro de 1975, o Paquete Niassa, que tinha saído do Porto de Luanda a 10
de setembro do mesmo ano, que haveria de trazer de regresso a Portugal, após
uma longa viagem de 13 dias, os 114 militares da Companhia de Caçadores 4246/73
(3 Oficiais, 16 Furriéis, 29 1ºs Cabos e 66 Soldados), que haviam terminado a
comissão de serviço na Região Militar de Angola, onde permaneceram cerca de 16
meses e nós estivemos lá para os receber e ajudar a encaminhar para as suas
localidades.
Durante a comissão de serviço na Região Militar de Angola, foram evacuados para a metrópole, por motivo de doença: um Oficial, um 1º Cabo e dois Soldados.
Recordemos que:
No dia 8 de junho de 1974, cerca da 01h00 da manhã, embarcaram num Boeing 707 dos Transportes Aéreos Militares, os 122 militares que compunham a Companhia de Caçadores 4246/73, sob o Comando do Capitão Miliciano Christian Bastos Andersen. Para melhor memória dos nossos descendentes, aqui ficam os nomes de todos:
Capitão Mil. |
Atirador |
Christian Bastos Andersen |
Alferes Mil. |
Op. Especiais |
Emanuel Jesus Fonseca Gravato |
Alferes Mil. |
Atirador |
Alberto Fernando C. L. Fernandes |
Alferes Mil. |
Atirador |
António Pereira Martins |
Alferes Mil. |
Atirador |
Manuel Lutas Craveiro de Sousa |
17 sargentos:
1º
Sargento |
TMS
Infª |
Manuel
Pinto |
Furriel
Mil. |
Enfermeiro |
Luís Manuel Moreira Neves Viegas |
Furriel
Mil. |
Vagomestre |
Albano Manuel Ferreira Rebelo Lobo |
Furriel
Mil. |
TMS
Infª |
Carlos Manuel Rego Barbosa |
Furriel
Mil. |
Mecânico
Auto |
José Luís de Barros Campos |
Furriel
Mil. |
Op. Especiais |
Fernando José Relvinhas Salgueiro |
Furriel
Mil. |
Artilh. Pesada |
Vasco Alfaia Gorgulho |
Furriel
Mil. |
Atirador |
António Manuel Conceição Batista |
Furriel
Mil. |
Atirador |
Armando Fernandes Gomes Amorim |
Furriel
Mil. |
Atirador |
Carlos Alberto Matos Fernandes |
Furriel
Mil. |
Atirador |
João António Guterres Pereira |
Furriel
Mil. |
Atirador |
João
Evangelista Afonso Magalhães Vaz |
Furriel
Mil. |
Atirador |
João Manuel Ribeiro Gonçalves |
Furriel
Mil. |
Atirador |
José Luís Frazão Peneda |
Furriel
Mil. |
Atirador |
Mário Luís Gonçalves Barroso |
Furriel
Mil. |
Atirador |
Norberto Chaves Freitas |
Furriel
Mil. |
Atirador |
Rogério Manuel Mateus Pires |
31 1ºs cabo:
1ºcabo
Espec |
Escriturário |
José
Joaquim Santos Ribeiro |
1ºcabo
Espec |
Operador
Cripto |
Arnaldo
Augusto Martinho Guimarães |
1ºcabo
Espec |
Operador
Cripto |
Jorge
Fernando Rodrigues da Silva |
1ºcabo
|
Aux.
Enfermeiro |
Domingos
Gil Pereira |
1ºcabo
|
Aux.
Enfermeiro |
José Fernando Pereira Machado |
1ºcabo
|
Aux.
Enfermeiro |
Jorge dos Santos Ferreira |
1ºcabo
|
Aux.
Enfermeiro |
Abílio dos Santos Oliveira |
1ºcabo
|
Mec.
Auto Lig. |
Lino Rosa da Fonseca |
1ºcabo |
M.Auto Rodas |
Júlio Eusébio Carvalhão |
1ºcabo |
Condutor
Auto |
Vítor Manuel da Silva Ribeiro |
1ºcabo |
Condutor
Auto |
Manuel Alberto Patrício Fajardo |
1ºcabo |
Radiotelegrafista |
Guiberto José Pacheco Fernandes |
1ºcabo |
Radiotelegrafista |
António Moreira Babo |
1ºcabo |
Cozinheiro |
António da Costa Campos |
1ºcabo |
Padeiro |
José Jesus Silva |
1ºcabo |
Op. Morteiro |
Vítor Manuel Peres Lourenço |
1ºcabo |
Op. Morteiro |
Manuel Carlos Leite Dinis |
1ºcabo |
Op. Metralhad |
José Mendes Pereiro |
1ºcabo |
Op.
Metralhad |
Augusto Coelho da Fonseca |
1ºcabo |
Corneteiro |
Luís Manuel Lemos |
1ºcabo |
Atirador |
Alípio Ervedosa de Moura |
1ºcabo |
Atirador
|
António Augusto Ribeiro Fernandes |
1ºcabo |
Atirador |
Joaquim Moreira da Silva |
1ºcabo |
Atirador |
José Soeiro Teixeira |
1ºcabo |
Atirador |
José Maria da Silva |
1ºcabo |
Atirador |
Francisco Pinto |
1ºcabo |
Atirador |
Constantino da Silva Pacheco |
1ºcabo |
Atirador |
Joaquim da Silva Sá |
1ºcabo |
Atirador |
Nuno Antunes Pereira |
1ºcabo |
Atirador |
Eduardo Adriano Félix |
1ºcabo |
Atirador |
Evaristo Maria Faustino |
69 soldados:
Soldado |
TMS
Infantaria |
Adriano
Jesus Marques |
Soldado |
TMS
Infantaria |
Luís
Manuel Rodrigues dos Santos |
Soldado |
TMS
Infantaria |
Vasco
de Jesus Gomes da Silva |
Soldado |
TMS
Infantaria |
Manuel
José Monteiro Parente |
Soldado |
Radiotelegrafista |
Rui Jorge da Silva Almeida |
Soldado |
Radiotelegrafista |
Analídio Belchior Costa |
Soldado |
Mecânico
Auto |
Fernando Carvalho Leitão |
Soldado |
Mecânico
Auto |
Manuel Ricardo da Silva |
Soldado |
Condutor
Auto |
António Camilo Leitão |
Soldado |
Condutor
Auto |
Fernando da Conceição Dias |
Soldado |
Condutor
Auto |
Serafim Freitas Rocha |
Soldado |
Condutor
Auto |
Fernando Oliveira Santo |
Soldado |
Condutor
Auto |
João Silvino Martins Lopes |
Soldado |
Condutor
Auto |
Francisco António Ferreira |
Soldado |
Condutor
Auto |
Florentino de Almeida |
Soldado |
Condutor
Auto |
António Manuel Pina Gonçalves |
Soldado |
Condutor
Auto |
António Gato Prates |
Soldado |
Condutor
Auto |
Aníbal Sousa da Silva |
Soldado |
Condutor
Auto |
Fulgêncio Soares Coelho |
Soldado |
Condutor
Auto |
Armindo Francisco Vieira |
Soldado |
Apont. Morteiro |
Nelson Marques Lourenço |
Soldado |
Cozinheiro |
José Joaquim Rodrigues Martins |
Soldado |
Aux.
Cozinha |
Manuel Joaquim Alves Pereira |
Soldado |
Aux.
Cozinha |
Coriolano Santos Gomes |
Soldado |
Corneteiro |
Manuel António Pires |
Soldado |
Corneteiro |
Manuel de Jesus Lopes |
Soldado |
Corneteiro |
Fernando Augusto Reis Monteiro |
Soldado |
Corneteiro |
José Miguel Pascoa Vieira |
Soldado |
Atirador |
João Jerónimo dos Santos |
Soldado |
Atirador |
José Luís Cerdeira Marques |
Soldado |
Atirador |
David Alves Cariano |
Soldado |
Atirador |
Horácio Eladestildes Godinho Carlos |
Soldado |
Atirador |
Américo da Silva Salvador |
Soldado |
Atirador |
António Eduardo Araújo Cândido |
Soldado |
Atirador |
Albino da Silva Simões |
Soldado |
Atirador |
António Simão |
Soldado |
Atirador |
António Francisco Relvas |
Soldado |
Atirador |
Sérgio Francisco Granjeia Loura |
Soldado |
Atirador |
Manuel Francisco Gomes |
Soldado |
Atirador |
José Félix Alberto |
Soldado |
Atirador |
Joaquim Esteves Duarte |
Soldado |
Atirador |
António Armando dos Santos Ferreira |
Soldado |
Atirador |
Joaquim José Pereira dos Santos |
Soldado |
Atirador |
João Simões Lourenço |
Soldado |
Atirador |
Gabriel Ricardo Inácio |
Soldado |
Atirador |
Carlos Alberto Marrafas Freire |
Soldado |
Atirador |
João dos Santos Garcia Branco |
Soldado |
Atirador |
João Laia Fernandes |
Soldado |
Atirador |
Abel da Conceição Agostinho |
Soldado |
Atirador |
Zeferino dos Santos Costa |
Soldado |
Atirador |
Eduardo Augusto da Silva Ribeiro |
Soldado |
Atirador |
Diamantino dos Santos Pina |
Soldado |
Atirador |
Ilídio Carreira Gomes |
Soldado |
Atirador |
António Francisco Luís |
Soldado |
Atirador |
Manuel Rodrigues Horta |
Soldado |
Atirador |
José Henriques Navalhas Fernandes |
Soldado |
Atirador |
Manuel dos Santos Galante |
Soldado |
Atirador |
Fernando Jorge Brinde Marques |
Soldado |
Atirador |
Carlos Alberto F. A. Carreira |
Soldado |
Atirador |
José António das Dores Bateira |
Soldado |
Atirador |
Eduardo Sabino |
Soldado |
Atirador |
José Mateus Jesus |
Soldado |
Atirador |
Luís Filipe Maria Garcia |
Soldado |
Atirador |
José Simões |
Soldado |
Atirador |
Domingos Ventura Rosa dos Santos |
Soldado |
Atirador |
José Costa dos Santos |
Soldado |
Atirador |
António Fernando Sobral Tavares |
Soldado |
Atirador |
Carlos Manuel da Silva Remigio |
Soldado |
Atirador |
Carlos Silva Coelho Bessa |
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