domingo, 13 de novembro de 2022

11 Novembro 2022

TEXTO que se segue, foi escrito e lido pelo meu Irmão e afilhado, PAULO RIBEIRO, no dia que comemorei 70 anos de vida, dia 11 de novembro de 2022

 

LIGUEM OS HOLOFOTES !!!!   PONHAM A GRAVAR ...

Este pequeno contributo será passado no canal memória e no canal parlamento !!!

Foi-me incumbida a tarefa de agraciar os aniversariantes com uma breves palavras, por não ser insipido e carregar nas palavras a honestidade que o momento exige.

Comecemos pelo Homo Sapiens (homem sábio em latim)

Sei quem ele é. Ele é bom rapaz um pouco tímido até ...

Falemos sério, agora:

Meu grande palhaço, badalhoco, filho de uma realíssima grandessíssima regalada alta e baixa rebola caixotes. É com imenso prazer que nos encontramos aqui reunidos para festejar o ano do condor, os teus 70 anos.

O que dizer de ti ? Bem...

Ao cruzares os nossos caminhos, por que o Ti Zé Changoto e a Ti Maria Balbina, jogaram ao espeta em terras de sua majestade, vieste preencher um espaço no universo que só em ti encaixava. Foste e és um filho que transpira afeto, carinho, aconchego e amor, um irmão que enriquece o seio familiar, um suporte, um pilar, és a água límpida que faz rodar o moinho; o ombro amigo que enxuga as nossas lágrimas, embora saibamos o quanto sofres também. E a dor que é escondida por detrás de um olhar de felicidade.

Sei que os teus canais lacrimais estão entupidos, mas sem intervenção médica consegue-se resolver o problema: Basta arrancar um pêlo do cu e as torneiras voltam a correr.

Começaste a trabalhar muito novo para ajudar a família, cresceste  e apanhaste defeito, também ninguém é perfeito, mas ser sportinguista é masoquismo, com a escolha que fizeste. Aprendeste com mérito e distinção a arte de trabalhar as unhas com os dentes, sorte a tua. A idade já não permite fazer obras de arte nas unhas dos pés. Enfim ...

Foste trabalhando sempre com afinco, onde o prazer exercia o gosto pelo que fazias. Saías e entravas em casa a cantarolar as musicas da época. Demis Russus eram os de eleição. Quando chegou a hora de partires para o ultramar cantarolavas para a Lina, Goodbye My Love Goodbye, ainda sabes a letra ?  

https://www.youtube.com/watch?v=f4LKlOyC-To

Já em campanha no ultramar cantava, Triki, Triki, Triki, Triki Triki, Mon Amour (Velvet Mornings)

https://www.youtube.com/watch?v=t3Hd04FDVU0

Tanto cantou o Triki Triki que, numa licença de poucos dias, veio ao Fundão e, Zumba na Zefa !

Desde essa altura perdeu o pio, nunca mais se ouviu cantar.

Foram tempos difíceis os da guerra, não só para ele como também para a família. Ficou marcada na época com uma musica que passava dezenas de vezes na rádio, a qual demonstrava a dor da incerteza e a fé de voltar são e salvo... 

(Mãe):  https://www.youtube.com/watch?v=5hSJ4O_KmSA 

Voltou da guerra e deu o nó, pois, a Zumba na Zefa, tinha trikitado uma cachopa.

Como não podia deixar de ser, fui obrigado a vestir fato pela primeira vez e ir entregar-lhe as algemas para a vida toda.

Depois desse dia ficou explicito e notório que o puto das alianças seria o gajo mais lindo da Cova da Beira e arredores, quiçá do mundo!!

Voltemos ao outro assunto que me trouxe aqui:

Este ser extremoso se tornou pai, um pai galaró porque galinha é a esposa. Um pai exemplar, cuidadoso e presente.

Lembro-me da imagem, na cara dele, a 24 de abril de 1979. É uma imagem que morrerá comigo.

Foi o dia que o pilar caiu e outro se ergueu sem saber como suportar o peso de uma estrutura tão grande e complexa, onde os caminhos se cruzavam mas com rumos diferentes. Aguentou firme, soube equilibrar a estrutura contra ventos e marés, orgulhando os demais que com ele privavam.

Viveu uma rotina de azáfama, entre trabalho, família, rádio, desporto, noites em claro para dar o braço e o ombro. Foi e ainda é o braço direito de várias instituições, é o pilar da família, nunca se queixa de nada. É respeitado por todos, diria até, mais que um ministro !

Adora recordar o passado, onde é uma enciclopédia. É um tio palhaço que dá de coração todo o amor e carinho aos badalhocos e badalhocas sem distinção ou preferidos.

É um avô, babado, mesmo emprestado, aos seus sobrinhos/netos.

Visto a capacidade da teoria não chegar à prática – provavelmente será preciso tirar curso –  e não venham com a desculpa do paracetamol.

Agora é para doer, veem as verdades nuas e cruas:

És,

O carinho, demonstração de afeto, alegria, sabedoria no intenso amor;

És,

Contador de histórias, alicerce de fortaleza. Vieste com o dom de com uma palavra de conforto sossegares quando é preciso;  teres um minuto de atenção para ouvir as angustias, medos, vitórias, derrotas, por dares confiança, fortalecendo a auto-estima de quem precisa.

Sem o contágio clamoroso presente no seu ser, a vida de todos nós seria tão somente incompleta e sem graça.

Amaste e amas de verdade, sem rodeios nem complicações, fizeste um caminho onde as tuas pegadas são indestrutíveis, tanto em nossos corações como em nossa alma.

És especial nas nossas vidas.

E ser especial não é ser mais ou melhor que os outros. Ser especial é ter um volume significativo de amor, amizade, compreensão, confiança e de verdade. Por isso te amamos tanto.

Fica em nós o cheiro e a saudade de tantos momentos vividos juntos, com a certeza de que muitos mais virão preencher os nossos sentidos e corações.

Muito obrigado por tudo.

Fomos aprendendo que com amor, tudo se supera, com fé, percebemos o quanto alivia e renova.

Com a capacidade de amar e de união formou-se uma família onde a novela, a falsidade, o conflito e as guerrilhas, foram banidas, onde o ar puro, o verdadeiro, o amor e a alegria imperam e orgulham os demais. Onde a coragem bate nas palavras e se tornam sabedoria e amor.

A graça concedida nas vitórias em torno da vida nada mais foi que consciência, dignidade e humildade.

Nunca encontraremos palavras suficientes para expressar o tamanho da nossa gratidão pelo que nos deste e dás, em momentos tão cruciais de nossas vidas.

Podemos apenas pedir a Deus que olhe por ti e que nos dês tantos momentos bons e saudáveis quanto o teu ser deseje, porque o coração, esse, anseia em grande e a família mostra vontade de compartilhar.

Parabéns Palhaço e aguenta-te com o ano do Condor

Obrigado por seres quem és.

 

sábado, 30 de abril de 2022

MAIS UMA MISSÃO CUMPRIDA


Ontem terminou mais uma das várias funções que desempenhei nos últimos anos, ligado à radiodifusão, local e nacional. Exerci as funções de Presidente do Conselho Fiscal da Confederação Portuguesa para os Meios de Comunicação Social, em representação da Rádio Cova da Beira, uma tarefa que desempenhei, nos últimos três mandatos, com muito orgulho e muita honra.

Nas eleições ontem realizadas na Confederação a RCB- Rádio Cova da Beira, vai manter aquele cargo, agora representada pelo atual presidente da Direção Miguel Nascimento. Uma eleição que me agradou e me encheu de orgulho.  Na verdade, a Confederação vai continuar a ter as mesmas entidades a presidir aos três Órgãos Sociais:  A RTP/RDP vai presidir à mesa da Assembleia Geral, a Associação Portuguesa de Radiodifusão  preside à Direção e a Rádio Cova da Beira mantém a presidência do Conselho Fiscal.

Por que a idade não perdoa e por que é nosso entendimento que nos cargos de responsabilidade devemos tomar a decisão de deixar as funções, que desempenhamos com toda a devoção, pelos nossos próprios pés, antes mesmo que alguém nos ache uns inúteis e nos empurrem borda fora, termina assim mais esta função, nesta minha caminhada pela radiodifusão local e nacional, podendo dizer que foi uma honra muito grande ter ocupado cargos de grande importância e exercido funções de enorme prestígio, mas ao mesmo tempo de grandes responsabilidades, em instituições como a RCB-Rádio Cova da Beira, nos cargos de Diretor Geral e Presidente da Direção, na APR- Associação Portuguesa de Radiodifusão como Secretário e Vice-Presidente da Direção e na CPMCS - Confederação Portuguesa para os Meios de Comunicação Social, como Presidente do Conselho Fiscal.

A vida continua, em outras tarefas, em outros desempenhos, sempre com o objectivo de servir.

segunda-feira, 25 de abril de 2022

C. Caç. 4246/73 -Angola, junho de1974 a setembro 1975

 



A Companhia de Caçadores 4246/73, era uma companhia Independente, que se formou no RI 2 – Regimento de Infantaria nº. 2 em Abrantes e transferiu-se para o Campo Militar de Santa Margarida, uma estrutura militar construída em 1953, para ali proceder à logística e realizar o IAO – Instrução de Aperfeiçoamento Operacional, com vista a cumprir uma comissão de serviço na Região Militar da então província ultramarina de Angola.

A C.Caç. 4246/73, foi uma de duas companhias independentes a participar, ativamente, na revolução dos cravos, a 25 de abril de 1974. 

 

Por se tratar de uma companhia Independente, toda a ação operacional da C. Caç.4246/73, era da responsabilidade do Comandante da Companhia, Christian Bastos Andersen, um tenente que viria a ser promovido a capitão, poucos dias antes do embarque para aquela missão de serviço em Angola, obedecendo, naturalmente, às instruções recebidas dos comandos nacionais, regionais e territoriais.

Capítulo I

A partida para Angola esteve agendada para maio de 1974, contudo, como a C. Caç.4246/73, que servi como escriturário, foi uma das duas únicas companhias independentes a participar ativamente nas operações militares do dia da liberdade a 25 de abril de 1974, a mesma foi adiada para junho. As instruções recebidas indicavam que o embarque iria acontecer no dia 7 de junho. Até lá, realizaram-se todos os preparativos, nomeadamente, exames médicos, consultas e tratamentos da saúde oral, toma de vacinas contra a malária (Paludismo), febre amarela e outras potenciais doenças tropicais. Curiosamente, eu que estava no posto médico a dar o apoio logístico aos médicos e enfermeiros, acabei por não fazer exames médicos, ter recebido as vacinas e não ter feito o tratamento de saúde oral. Felizmente, durante o período que estive em Angola não tive qualquer problema de saúde. Apenas fui vítima da “flor do congo” (eczema de origem fúngica). Numa linguagem mais acessível, nós os militares identificávamos aflor do congo” como uma doença de pele (micose) que atacava as virilhas e partes genitais. Para combater a doença usei todo o tipo de produtos que os enfermeiros me receitavam, um dos quais tintura de iodo. Este tratamento, por tintura de iodo, para além de não ter ajudado a melhorar, fez com que a pele saltasse e andasse, pelo menos durante dois/três dias, com as pernas escanchadas (ligeiramente abertas). Era horrível e propiciava uma imagem caricata, quando tinha que me deslocar. Só consegui curar essa micose, definitivamente, alguns anos depois, após consultar um médico que, curiosamente, fez o serviço militar em Gago Coutinho - Leste de Angola.

Entretanto, depois de ultrapassada toda a burocracia que uma viagem de avião, para 122 pessoas implica, do dia 5 de junho saímos do Campo Militar de Santa Margarida, rumo a Lisboa e ao Quartel da Pontinha, onde pernoitamos dois dias. Nestes dois dias, a aguardar avião, aproveitamos para passarmos algumas horas com os nossos familiares e amigos. Ao início da noite do dia 7 de junho, por volta das 19 horas, saímos do Regimento de Engenharia nº. 1 da Pontinha, em autocarros militares, em direção ao Aeroporto Figo Maduro. Passamos por uma manifestação do MRPP, que entre outras coisas reivindicava, com palavras de ordem, que “nem mais um militar para as colónias”. De facto, de nada valeram as reivindicações que quase todos os partidos políticos faziam naquele período, pós-revolução. Nós próprios chegamos a acreditar que a nossa comissão de serviço em Angola iria ficar sem efeito. Como se confirmou, não foi o que aconteceu.

Após o check-in, subimos para a aeronave, sensivelmente, por volta das 23 horas, mantivemo-nos a aguardar dentro do aparelho até que tudo ficasse em condições de podermos levantar voo. Como a viagem só teve lugar depois da meia noite, bem próximo da uma da madrugada, verdadeiramente a nossa partida ocorreu já no dia 8 de junho.  A Companhia de Caçadores 4246/73 seguiu rumo a Luanda, num avião dos TAM – Transportes Aéreos Militares, com muita esperança na bagagem de podermos cumprir a missão que nos estava confiada e regressarmos em perfeitas condições físicas e de saúde:

A Companhia de Caçadores 4246/73 era composta por cinco oficiais: um capitão e quatro alferes milicianos, um primeiro sargento, responsável pela secretaria, dezasseis furriéis, com várias especialidades, trinta e um primeiros cabo, igualmente com várias especialidades e sessenta e nove soldados, num total de 122 homens, aos quais se iriam juntar 44 soldados nascidos e formados em Angola.

Na hora da partida era notório que nenhum dos 122 elementos da companhia estaria nas melhores condições psicológicas. Na curta viagem entre a Pontinha e o aeroporto era visível no rosto de cada qual os diferentes estados de espírito. Na entrada para a aeronave, era por demais evidente o nervosismo, revelado em cada movimento e ação. Alguns havia que se manifestavam de forma silenciosa e recatada, outros, numa clara exteriorização de euforia, que mais não era que tentar esconder as emoções do momento. O desconhecido e a missão que nos esperava não deixava nenhuma margem de conforto.

Partimos do aeroporto Figo Maduro em Tires, num Boeing 707 dos TAM – Transportes Aéreos Militares, por volta da 01h00 da manhã, no dia 8 de junho e chegamos a Luanda por volta das 9 da manhã. Foram cerca de 8 horas de voo, aproveitadas pela grande maioria, para descansar ou mesmo dormir.

No aeroporto internacional de Luanda, estavam várias viaturas militares Berliet à nossa espera. Depois da descarga e carga da bagagem de cada qual, subimos para as viaturas militares que nos transportaram para o Campo Militar do Grafanil, uma estrutura militar, localizada a cerca de 7 quilómetros de Luanda, na estrada de Catete, atualmente transformada em Instituto Superior Técnico Militar e Escola Superior da Guerra.



Neste Campo Militar estivemos três dias, os necessários para se preparar a viagem rumo ao Leste do país, mais concretamente, a um aquartelamento situado a cerca de 30 quilómetros da vila de Gago Coutinho (Lumbala N’Guimbo). No Grafanil, foram-nos distribuídos colchões de espuma, que colocamos no chão de uma caserna com as condições básicas. Esta tinha uma cobertura em fibrocimento, a cerca de 4 metros de altura, as paredes ocupavam uma parcela daquela altura, talvez uns 2 metros e o resto, até ao telhado, era aberto. Também não havia portadas.




Dizer que, comparativamente, houve uma evolução muito significativa nas condições que o Campo do Grafanil passou a oferecer, visto que, anteriormente, não muitos anos antes, os militares em transição tinham que dormir em tendas bivaque. Tendas de três panos, onde dormiam 3 militares. No Grafanil tínhamos o estritamente necessário: refeitório, cantina, caserna, com sanitários adequados, parecidos com os que havia nos quartéis da metrópole.  

Como a caserna era aberta, naturalmente, foi necessário fazer uma escala de serviço para que houvesse sempre alguém a fazer a proteção dos nossos pertences, quando nos ausentávamos. No meu caso, para além das horas de expediente, junto do meu chefe, na preparação da viagem que nos aguardava, sai todos os dias, para me juntar com alguns conterrâneos que prestavam serviço militar em Luanda e que me possibilitaram conhecer uma parte daquela cidade fantástica.

CAPITULO II

Abrantes, terra onde tudo começou.



RI 2 – Foi no Regimento de Infantaria nº. 2 em Abrantes, que a Companhia de Caçadores 4246/73, se formou e ao qual ficamos ligados para sempre. É lá que se encontra o nosso espólio, símbolos – estandarte e brasão da companhia, desenhado, com muita perícia e saber, pelo furriel Luís Viegas e toda a documentação oficial.

Em Abrantes, no RI 2, fui colocado a 16 de dezembro de 1973, depois de ter feito o curso de escriturário, no RAL 4 em Leiria, um curso com vários sub-cursos, nomeadamente: secretariado, escrituração militar, datilografia e SPM - Serviço Postal Militar. Comecei por servir na CCS – Companhia de Comando e Serviços do Regimento, mas, no dia 4 de janeiro de 1974, fui transferido para o DRM – Distrito de Recrutamento e Mobilização Nº. 2 em Abrantes, no centro da cidade, tendo sido integrado na 4ª Repartição. Nesta, o meu serviço passava por dar baixa de todos os ex-militares que se encontravam na reserva e que, por terem completado 45 anos de idade deixavam de ter esse estatuto. Foi um trabalho que gostei de executar, quase todo ele feito à mão, não necessitando da máquina de escrever. Esta usava-a apenas para notificar algumas juntas de freguesia ou comandos locais da GNR ou PSP, a propósito de se saber o paradeiro ou situação de alguns ex-militares.  No DRM tínhamos sido colocados três novos escriturários, distribuídos pelas diferentes repartições. Os três tínhamos uma relação muito boa, que, de forma carinhosa nos tratávamos por “Ribas, no meu caso, o Almeida de Rio Tinto por “Bigas” – por ter um bigode bem volumoso e o Pacheco, por “Guimas” por ser natural de Guimarães. Como o DRM Nº. 2 funcionava das 9 até as 17 horas (horário de repartição pública) as horas que sobravam passávamos sempre juntos. O Pelicano, o café e pastelaria mais emblemático daquela cidade, na época, tinha que nos aturar todos os dias, depois das refeições do almoço e jantar.

O DRM nº. 2 funcionava como uma repartição publica, com horário da 9 às 17, com intervalo de uma hora para almoço. As nossas refeições eram fornecidas pelo RI 2. Pelas 13 horas e pelas 18h30, vinha uma viatura do quartel com a alimentação dos três e mais quatro soldados que tinham a função de ordenança de cada repartição e fazer a guarda das instalações. Havia um quarto/camarata, ao lado das secretarias, onde dormíamos os três mais os outros militares. Havia mais uns quantos cabos  escriturários, que já lá estavam há algum tempo, mas tinham o estatuto de desarranchados, por serem da própria cidade ou de localidades vizinhas. Depois da hora de expediente só ficávamos os escriturários e os soldados da guarda. Naquela altura o estado estava a construir novas instalações para o DRM, numa rua paralela, uma vez que as que estávamos a utilizar estavam muito degradadas. Os serviços mudaram para o novo edifício quando nós estávamos em Santa Margarida, por isso já não as chegamos a conhecer. Ao lado do edifício do DRM Nº. 2, que ocupava as instalações do antigo Convento de Nossa Senhora da Esperança, funcionava o Colégio de Nossa Senhora de Fátima, na atual Rua Ator Taborda, que recebia jovens internas para ali estudarem. Era um colégio gerido por freiras. No tempo que lá prestei serviço estava lá uma jovem do Fundão, que pertencia a uma família de empresários ligados a toda a atividade para a agricultura, inclusive, maquinaria de lavoura ou rega. Durante o período que servi nesta instituição, criamos um ritual, de logo pela manhã nos cumprimentarmos, eu da janela da minha repartição e ela de um varandim onde a maioria das alunas permaneciam entre intervalos de aula.

O Distrito de Recrutamento e Mobilização nº. 2, em Abrantes foi constituído no ano de 1926, então designado de Distrito de Recrutamento e Reserva, em 1977, passou a designar-se de Distrito de Recrutamento e Mobilização de Abrantes e foi extinto no dia 14 de julho de 1993.

Os dias em Abrantes não nos custavam a passar, mas estávamos sempre ansiosos que chegasse a sexta-feira para podermos aproveitar o fim de semana com a nossa família e namorada. Tínhamos tudo o que podíamos ter. O dinheiro que cada um tinha é que limitava ou não as nossas opções para passar o tempo. Nos dias que houvesse cinema ou outra atividade cultural, lá estaríamos nós. Aliás, foi após uma sessão de cinema que eu e o Bigas tomamos conhecimento de que estávamos mobilizados para Angola e Moçambique. Na altura tínhamos a convicção de que já não seriamos mobilizados por termos conhecimento de que os batalhões de rendição, já estavam totalmente constituídos, esquecemos que também havia Companhias Independentes que faziam, igualmente, a rendição nas províncias ultramarinas. Na altura não tivemos conhecimento de qual dos dois ia para Angola ou Moçambique, só no dia seguinte chegou toda a informação. Eu iria ser integrado na Companhia Independente C. Caç.4246/73 e tinha como destino Angola e o Bigas iria integrar uma outra companhia Independente, a C.Caç. 4241/73, que tinha como destino Moçambique.


No dia 5 de fevereiro, ambos fomos promovidos a 1º cabo especialista e regressamos ao RI 2 para nos juntarmos às respetivas companhias. Verifiquei, mais tarde, que o meu nome já estava incluído no número de efetivos da C. Caç. 4246/73 desde o dia 4 de janeiro, ainda que só tivéssemos conhecimento desse facto no início do mês de fevereiro.

No Regimento de Infantaria nº. 2 estivemos a constituir Companhia durante três semanas, com os diferentes militares e especialidades a chegarem a conta gotas. O trabalho na secretaria, nesta fase do processo de constituir companhia, era imenso e muito exigente, para mim e sobretudo, para o meu chefe, o 1º Sargento Manuel Pinto, um homem sensacional.

O 1º Sargento Manuel Pinto, era um militar do quadro, muito organizado, com um conhecimento das matérias militares como havia poucos e com uma enorme capacidade para ensinar, quem, como eu, nada percebia dos termos e linguagem que se utilizavam nas forças armadas (uma coisa é  o curso que tiramos e outra bem diferente é saber executar na pratica o que em teoria nos ensinaram). Aprendi muito com este Senhor, de Lamego, durante o período que convivemos, na metrópole e no ultramar. Infelizmente, uma parte da comissão em Angola, não tive a sua companhia, porque, em períodos diferentes – dois meses em cada período, teve que regressar a Portugal devido ao facto das suas duas filhas terem sido vítimas de uma doença rara, que lhes provocou a morte. As duas tinham uma diferença de um ano e ambas pereceram quando atingiram os 12 anos de idade. Foi uma tristeza imensa, que abalou por completo um homem que tinha uma postura exemplar, mas que não deixava de ter um bom sentido de humor. Tudo se perdeu com estes trágicos acontecimentos.

O trabalho de secretaria era muito virado para os processos individuais de cada elemento que fazia parte da companhia. Todos os dados, individuais e familiares, com respetivos contactos, tinham que fazer parte do processo. Todos os dias tínhamos que fazer um género de requisição com o número de militares que iriam almoçar e jantar no dia seguinte, para entregarmos na cozinha do regimento. Este documento tinha em separado os oficiais, os sargentos e restantes militares, cabos e soldados. Era também uma das nossas atribuições tratar do correio da companhia e fazer a sua distribuição, tratar das dispensas, para as saídas à noite e nos fins de semana. As dispensas da noite podiam ser utilizadas logo a partir das 18h30 para quem quisesse jantar fora. A hora de entrada no quartel, quer nos dias úteis quer nos fins de semana, tinha que ser até à uma da manhã.

Ficamos em Abrantes até meados de março de 1974, depois, toda a companhia foi transferida para o Campo Militar de Santa Margarida.

CAPITULO III



A estadia no Campo Militar de Santa Margarida tinha como objetivo principal, fazer o IAO – Instrução de Aperfeiçoamento Operacional, ou seja: preparar os militares operacionais para as tarefas de combate na forma de guerrilha, i.e. instrução em operações de contra-guerrilha. (a guerra no ultramar era traiçoeira, exatamente, por funcionar no sistema de guerrilha) e tratar de toda a logística necessária ao embarque e ao período que nos estava reservado na província ultramarina de Angola.

Em Santa Margarida, as tarefas estavam todas muito bem definidas e bem agilizadas  por todos os elementos que compunham a C. Caç.4246/73. A companhia foi dividida em quatro pelotões, cada qual com o seu comandante, os Aspirantes (ainda não tinham sido graduados em Alferes), Martins, Fernandes, Sousa e Gravato, apoiados pelos Cabos Milicianos (ainda não tinham sido graduados em Furriéis) Amorim, Fernandes, Batista, Guterres, Salgueiro, Gonçalves, Peneda, Barroso, Freitas, Vaz, Pires e Gorgulho sob a coordenação global do Tenente (ainda não tinha sido graduado em capitão) Christian Andersen.

Como os especialistas eram quadros de grande importância para o bom funcionamento da companhia, não podemos deixar de enaltecer o papel que tiveram o responsável pela nossa saúde, o Furriel Luís Viegas, que tinha sob o seu comando os 1ºs Cabos auxiliares de enfermeiro, Gil Pereira, José Machado, Jorge Ferreira e o Abílio Oliveira;  o Furriel Carlos Barbosa, que tinha a seu cargo as transmissões e tinha sob o seu comando os 1ºs. Cabos Guiberto Fernandes e António Babo;  o Furriel José Luís Campos, que tinha a responsabilidade do parque auto e tinha sob o seu comando os 1ºs. Cabos Lino Fonseca, Júlio Carvalhão, Vítor Ribeiro e Manuel Fajardo;  e o homem que tinha a preocupação de escolher o melhor para as nossas refeições, o Furriel vagomestre Albano Lobo que tinha sob o seu comando os 1ºs. Cabo António Campos, cozinheiro e o José Silva, padeiro.

Outras especialidades de grande importância e que ainda não fiz referência, como os Operadores Cripto, Jorge Silva e Arnaldo Guimarães, o Escriturário José Ribeiro (eu) e o Corneteiro Luís Lemos, este, pela especificidade da sua especialidade, destacou-se mais como responsável pelo bar dos graduados.

O Campo de Instrução Militar, construído em 1952 (ano que coincidiu com o do nascimento de quase todos os militares da nossa companhia), em Santa Margarida da Coutada, no concelho de Constância, oferecia todas as condições para uma boa preparação operacional dos militares. Não faltava espaço nem condições para executar todas as tarefas. O CMSM era composto de:


 

6400 ha de Área Total; 350 ha de Área da Zona de Aquartelamentos; 330 Edifícios, de entre os quais o quartel general, outros edifícios de comando, casernas, refeitórios, meses, oficinas, salas de convívio, igreja, cinema, etc; 1 Avenida Principal com 2,4 Km;  1 Pista de Aviação; 2 Heliportos;  4 Carreiras de Tiro de Armas Ligeiras; 1 Carreira de Tiro de Carros de Combate; 1 Carreira de Lançamento de Granadas; 1 Pista de Combate; Oficinas e depósito de armamento composto de 7 paióis.

Como o campo militar tinha quase tudo o que era necessário para a ocupação de tempos fora do serviço, foram raras as vezes que saímos à noite. Não tenho bem presente, mas acho que só por uma vez jantamos no Tramagal e outra em Abrantes. A esta cidade fomos mais duas ou três vezes no máximo. E íamos porque o Bigas, o meu companheiro de secretaria da 4241 tinha carro e isso permitia-nos ter alguma mobilidade. Na grande maioria do tempo que estivemos em Santa Margarida passamos o nosso período de laser no bar ou sala de convívio, onde não faltavam jogos como ténis de mesa, bilhares e snookers, matraquilhos e mesas de jogos de cartas. Tínhamos também o cinema, sempre com filmes atualizados no tempo.

Não faltavam, como se percebe, condições para nos entretermos e não faltavam condições para um bom desempenho de todas as especialidades do ramo militar. Os nossos militares operacionais eram sujeitos a grandes cargas de treino, sobre os mais diversos cenários de guerrilha, desde manhã, bem cedo, até ao final da tarde. Labutavam no duro, durante todos os dias da semana e em alguns dias ainda tinham a complicada e exigente instrução noturna, acrescida de várias sessões de provas físicas complementares, na preparação para as adversidades que se avizinhavam e que se adivinhavam difíceis. Falamos de guerra de guerrilha.

Todos os setores da companhia iriam passar por testes nunca antes vividos, desde os cozinheiros, padeiros, telegrafistas, operadores Cripto, mecânicos ou condutores auto, todos, sem exceção iriam experienciar coisas novas e muito complicadas de executar e gerir. No nosso caso, tínhamos uma secretaria, que estava a ser partilhada pelas duas companhias independentes, a nossa C.Caç.4246 e a C. Caç. 4241, equipada com o equipamento e mobiliário necessário, ou seja: quatro secretárias, para chefes de secretaria e comandos e duas mesas de trabalho e de dactilografia.

Foi durante o período de Instrução de Aperfeiçoamento Operacional da nossa Companhia que se deu o “golpe” militar do 25 de abril.

 

25 de Abril de 1974 

A Companhia de Caçadores 4246/73 foi uma das unidades a participar ativamente nas operações militares que haveriam de derrubar o regime político que vigorava há cerca de 48 anos em Portugal e que estava em guerra com os Movimentos de Libertação das diferentes províncias ultramarinas de Angola, Moçambique, Guiné, Cabo Verde e Timor. O nosso comandante de companhia, Christian Bastos Andersen, Tenente Miliciano, participou em algumas das reuniões que visavam o derrube do regime político. O movimento dos capitães, robustecido por um número muito significativo de oficiais milicianos surge na sequência dos movimentos que já se vinham registando junto dos Oficiais do Quadro Permanente e saídos da Academia Militar, como bem referiu, num dos seus muitos escritos, o Coronel Sousa e Castro, um dos militares mais ativos no antes e após a revolução dos cravos:

“ 9 de Setembro, uma data para ser lembrada”. Neste dia, em 1973, reuniram-se em Alcáçovas, Monte Sobral, do rendeiro Celestino Garcia, um velho republicano, 136 jovens oficiais do Exército Português, com as patentes de alferes, tenentes, capitães, a maioria, e alguns majores;

 

A reunião, promovida por um pequeno núcleo de oficiais da capital, tinha como objetivo explicito contestar a legislação que o governo da ditadura havida produzido e que no entender dos oficiais do Quadro Permanente oriundos da Academia Militar os prejudicava;

Logo de início, um reduzido número de oficiais entenderam que aquela seria uma excelente oportunidade para iniciar uma estratégia conspirativa tendente a derrubar a ditadura e resolver o problema colonial e do regime político;

Essa estratégia fica dramaticamente comprometida quando o governo da ditadura revoga toda a legislação contestada pelos "capitães" e decreta um chorudo aumento dos soldos, particularmente para a classe dos capitães;

E agora, como vai ser possível manter a chama conspirativa viva, é a interrogação do núcleo restrito dos conspiradores que preconizavam a ação armada para o derrube da ditadura;

É um conjunto de acontecimentos de natureza militar que oxigenam a conspiração, a alimentam e a tornam um movimento poderoso. O aparecimento dos misseis antiaéreos strella 7 no campo de batalha da Guiné, retirando a supremacia aérea às nossas tropas é o mais dramático;

A revolta dos brancos da cidade da Beira-Moçambique e o ataque que levam a cabo às tropas metropolitanas tiram todas as ilusões que restavam ainda, de uma solução pacifica e negociada para a mudança de regime. O golpe militar estava à vista e era imparável.”

Este testemunho do Ex-Coronel Sousa e Castro é bem elucidativo do que se começava a desenhar para que a revolução se concretizasse a 25 de abril de 1974.

 



Do lado da nossa Companhia, o Comandante Christian Bastos Andersen, que já tinha participado em algumas reuniões, pôde concluir que o movimento passava a ser composto pelos oficiais do Quadro Permanente e Oficiais Milicianos, todos com o objetivo de derrubar o governo, terminar com o regime que vigorava e acabar com a guerra nas colónias.

Para uma melhor compreensão do que se passou naquele período, deixo aqui o que foi a preparação e a ação da C. Caç. 4246/73 na revolução dos cravos, num testemunho, na primeira pessoa, do Comandante da nossa Companhia:

... “Este período em Sta. Margarida foi riquíssimo em convívio e troca de impressões entre todos os soldados, mas sobretudo com os graduados, sobre a política em Portugal. Naturalmente como ali ninguém estava de boa vontade, depois do medo e hesitação inicial, a comunicação correu fácil e solta. Entretanto começaram reuniões com outros militares, em que de St. Margarida ia o Cap. Miliciano, Luís Pessoa, comandante da C. Caç. 4242/73 e eu (mais ele que eu, que já tinha 3 filhos e preferia ir a casa), que tomaram um sentido crescentemente conspirativo até chegar ao ponto de ser aprovada a vontade de fazer a Revolução. Tínhamo-nos comprometido! Éramos revolucionários! Esta consciência de que nos tínhamos comprometido numa potencial revolução foi acontecendo ao longo de março/abril, mas a confirmação de que iríamos fazer um golpe de Estado foi apenas pelo dia 15/18 de abril. Curiosamente, o golpe falhado das Caldas, em 16 de março, em vez de desanimar até entusiasmou, pois foi sentido como um golpe muito sectorial (spinolistas apenas) e por isso muito pouco abrangente, tendo sido, por isso, que falhou, mas serviu para mostrar que o Regime estava fraco! Se muitas vezes senti medo sobretudo pela minha família, também é verdade que se vivia um clima de algum inebriamento e, já perto da data, soube que um dos organizadores era o meu cunhado, o major Sanches Osório, o que muito me reconfortou, pois conhecia-o bem e sabia-o pessoa de bem.

Naturalmente que esta última semana antes do 25 de Abril foi de preparação do golpe e de nós próprios. Embora nunca tenha tido consciência de ter manipulado os meus soldados, contava desafia-los para virem comigo, esperando que alguns deles assim o quisessem fazer e que os restantes se mantivessem calados e portanto, foi natural que também nesta semana tivesse intensificado as discussões políticas na Companhia.

Entretanto o Cap. Luís Pessoa foi a uma reunião onde lhe confirmaram que a data mais provável seria o dia 25 de Abril, a pré-confirmação seria dada pela emissão de uma canção popular ”E depois do adeus” cantada pelo Paulo de Carvalho nos Emissores Associados de Lisboa pelas 23h do dia 24 de Abril. Se essa canção fosse para o ar deveríamos preparar tudo para começar a Revolução, cujo início seria marcado pela agora famosíssima canção do Zeca Afonso “Grândola, vila morena”. Ainda hoje fico emocionado quando a ouço! Era uma canção proibida pela Censura e que sendo emitida pela Rádio Renascença pouco depois da meia noite confirmaria que a Revolução não tinha sido abortada e, portanto, arrancaríamos. A nossa ordem de marcha foi no sentido de ocuparmos a ponte de Vila Franca, para impedir o Regime de a tomar e ao mesmo tempo impedir os tanques de Santarém de chegar a Lisboa, caso eles não passassem para o nosso lado. A companhia do Cap. Pessoa (ou os soldados que ele conseguisse convencer) iria tomar os emissores do Porto Alto, centro de retransmissão, que estando nas nossas mãos impediriam o Regime de falar pela Rádio para Portugal inteiro. Confesso que senti uma pontinha de inveja com a missão aparentemente tão fácil que lhe tinha cabido comparada com a nossa: enfrentar os tanques?! Também fiquei a saber o nosso código rádio para falar com o nosso Comando na Pontinha: Charlie 18. Fomos também avisados que as forças da GNR não estavam do nosso lado, pressupondo-se que permaneceriam fiéis ao Regime e que poderiam opor-se à nossa marcha para Lisboa.

Durante todo o dia 24 os nervos foram imensos! Aproveitei para me informar como poderia roubar as viaturas, rádios, munições e armas, pois todos estes equipamentos, depois de cada dia de instrução eram entregues nos respetivos paióis e armazéns. Nada ficava na nossa posse: consegui sonegar uma pistola – era todo o armamento que eu tinha para fazer uma Revolução! – Verifiquei com enorme apreensão que embora existissem bazucas em Sta. Margarida não havia munições para elas. E as bazucas eram as únicas armas que eu conhecia capazes de parar um tanque! Se de facto tivéssemos que abrir fogo contra os tanques, melhor seria que o fizéssemos com fisgas, pois assim talvez os tanques se rissem de nós e não dizimassem o meu pessoal. O Cap. Pessoa disse-me (talvez só para me descansar) que nos iríamos encontrar na Ponte da Golegã com uma coluna, que viria da Engenharia de Tancos e que levaria muita munição para nós.

Quando ouvi o “E depois do adeus” chamei os graduados (que já dormiam) para lhes dizer que iríamos ter uma instrução noturna pouco depois da meia-noite e que, portanto, avisassem os seus soldados para estarem prontos pela meia-noite junto a uma caserna. Colei o meu ouvido à telefonia com crescente nervosismo, até que pela meia-noite e vinte lá apareceu o Grândola! Fiquei gelado: era agora. Já não haveria retorno possível! Mas, como sempre acontece em momentos de ação, passou-me o nervosismo: sabia o que tinha que fazer!

Dirigi-me ao local onde os soldados e graduados me esperavam e falei-lhes explicando-lhes que para mim tinha chegado a hora de me levantar contra este Regime e que iria para Lisboa entrar numa Revolução! Quem quereria juntar-se a mim, avisando que poderia ser uma semana complicada? Esperava que pelo menos uma dúzia se me juntassem, mas aconteceu uma coisa inacreditável: todos deram um passo em frente! A emoção tomou conta de mim, mas ao mesmo tempo um medo enorme: para onde estava eu a arrastar todos estes jovens? Graças a Deus estava escuro e eles não puderam ver bem a minha cara! O único que não foi connosco foi o 1º Sargento Pinto, porque achei que sendo ele profissional eu não tinha o direito de lhe dar cabo da carreira, caso a Revolução não vingasse. Tenho a impressão que nunca me perdoou eu não o ter chamado.

Não havia tempo para grandes dúvidas: fui ao parque das viaturas e disse ao soldado que vinha levantar viaturas para uma instrução noturna. Ele não acreditou, porque não tinha ordem nenhuma nesse sentido: onde estava a minha autorização? Mostrei-lhe a minha pistola e ele considerou que seria uma autorização suficiente! As viaturas capazes de sair eram muito poucas e por isso lá fomos 120 pessoas penduradas em meia dúzia de viaturas arrombar os paióis e armazéns de onde tirámos as G3, granadas, rádios, rações de combate, etc…

Lá arrancámos para Lisboa, já seriam uma duas e meia da manhã, sem grandes incidentes, até à Ponte da Golegã, onde nos encontraríamos com a Grande Força da Engenharia cheia de oficiais superiores, soldados a valer e sobretudo: muitas armas e munições antitanque! Todos estes sonhos nos deram algum descanso! E de facto começámos a vislumbrar uma longa procissão de faróis ao longo da ponte, talvez umas 40 viaturas: eram eles! Estávamos safos!

Quando pararam ao nosso lado eu não queria acreditar: as Berliets vinham quase vazias de pessoal (ao todo seriam talvez uns 20) e quanto às tais munições antitanque, nada! Apenas tinham trazido bastantes cunhetes de munição para G3, da qual já tínhamos bastante.

Não havia tempo para lamentações e eu não queria que os soldados sentissem a fraca organização em que estávamos envolvidos. Lá seguimos para Vila Franca. Pelo caminho os GNR não nos hostilizaram, pelo contrário, os poucos que vimos ajudaram a nossa marcha regulando o pouco trânsito que havia àquela hora.

Chegámos à portagem da Ponte de Vila Franca ao alvorecer.

O dispositivo foi montado, tendo em conta que não tinha mais para opor aos tanques do G3. Entretanto achei melhor acabar com as portagens, para evitar algum eventual engarrafamento. Detetámos um oficial superior da aviação dentro de um VW: era o comandante da base do Montijo (salvo erro…) e que decidi que ficasse ali “preso”, sobretudo incomunicável, o que suportou com razoável bonomia: julgo que já teria sabido de qualquer coisa, pois não ficou nada preocupado.

Pelas 10h fui contactado, via rádio, que o movimento praticamente não estava a ter oposição e que algumas unidades mais já tinham passado para o nosso lado, incluindo os tanques de Santarém. Uf! Que alívio!

Devo dizer que embora a portagem da ponte de Vila Franca Xira não fosse zona própria para piões, começaram a aparecer algumas dezenas de civis, que queriam saber o que estávamos ali a fazer, e que depois de se lhes ter sido dito que era uma revolução para derrubar o regime, o seu apoio foi bastante generalizado e inequívoco, embora ainda com algum temor.

Pelas 11h recebemos ordem para irmos ocupar o Aeroporto, pois a EPI de Mafra não teria efetivos capazes de o fazer em condições. Assim fizemos, juntámos o pessoal todo e arrancámos em direção a Lisboa.

À entrada em Lisboa, junto ao atual Ralis (naquela altura a autoestrada não estava tão rebaixada, nem existiam aqueles viadutos e o Ralis dava diretamente para o fim da autoestrada) estava montada uma barricada para nos impedir de passar! Não fiquei muito preocupado apesar de ser um obstáculo inesperado (o Comando tinha-nos dito que não sabia de nenhum impedimento na marcha para Lisboa), o que é facto é que a forma como a barragem estava montada era completamente inútil para impedir uma coluna com a dimensão da nossa: 20 a 30 militares armados de G3 com duas viaturas atravessadas nas duas faixas, as quais nem sequer tapavam completamente a nossa passagem. Era um proforma de quem estava a cumprir alguma ordem, que não lhe apetecia nada seguir: era uma barricada para fingir que se tinha feito alguma coisa. Os soldados que iam comigo na viatura mostraram as armas com prontidão, enquanto que os militares da barragem nem nos apontaram as suas armas.

Dirigiu-se-me um aspirante que, suponho, estaria a comandar aquele grupo de militares e estabeleceu-se o seguinte diálogo:

Tenho ordens para não deixar passar – disse ele

E eu tenho ordens para passar! – disse eu

Não serei eu que o vou impedir – disse o aspirante em voz um pouco mais baixa.

No entanto, embora tudo aquilo me parecesse um faz-de-conta, achei que haveria mais do que aquela força e não queria arriscar arrancar e, de dentro do quartel e bem melhor protegidos do que aqueles militares em pé ali na rua, alguém começasse a fazer fogo. Dirigi-me ao aspirante:

Recebes ordens de quem?

Do meu Coronel.

E onde está ele?

Está ali junto ao muro do quartel do lado de dentro.

Então vamos falar com ele! – disse eu.

Lá fomos os dois a pé, com 5 ou 6 dos meus soldados, até ao muro e o tal comandante estava dentro duma guarita. Só lhe via os olhos! Tive a sensação de estar a falar com alguém entalado dentro de um marco do correio! Com ele tive esta conversa:

Então meu coronel, o que se passa?

Tenho ordens para não deixar ninguém passar para Lisboa e, portanto, não pode passar!

E eu tenho ordens para passar e vou passar!

Mas tem ordens de quem?

Do Comando da Revolução!

Ele calou-se um pouco e disse qualquer coisa do tipo: não recebi instruções para este caso.

Eu disse-lhe: meu Coronel, vou passar a bem ou a mal e, se preza os seus soldados que estão naquela barragem, é melhor dizer-lhes para se afastarem, e voltei-lhe as costas, tentando aparentar uma calma que estava longe de sentir.

O aspirante que voltou comigo estava todo entusiasmado. Disse-lhe só para afastar um pouco as suas viaturas para nós podermos passar, o que fez prontamente, e nós seguimos para o Aeroporto. Este episódio, nessa mesma altura, fez-me sentir que o Regime estava podre e que ninguém se iria opor decididamente à nossa revolução. Pelo que fiquei bem mais descansado!

Chegados ao Aeroporto, já lá estavam alguns militares (uma dúzia?), que ficaram visivelmente muito aliviados quando viram chegar a minha Companhia. De facto, eramos uma força considerável – bem mais de 100 militares – o que permitiria montar um perímetro de segurança às pistas, torre de controlo e edifícios. A pequena força que lá encontrámos, sendo poucos, tinha armamento bem melhor que o nosso: entre outros, dois canhões sem recuo e com munições!

Pouco tempo depois o oficial (da EPI?) que estava na torre de controlo veio avisar-me que se estavam a aproximar 2 aviões vindos de Tancos, provavelmente cheios de paraquedistas, os quais ainda não se sabia de que lado estariam. Fiquei muito preocupado: se os aviões estivessem cheios, teriam o dobro dos nossos efetivos e com um treino operacional muito superior ao nosso. Se os deixasse aterrar estávamos vencidos, com um número de mortos certamente elevado! Só vi uma hipótese: colocar os canhões no alinhamento da pista e fazer explodir os aviões ainda em fase de aterragem. Enquanto estava discutindo esta hipótese com o tal oficial, chegou a notícia, logo depois confirmada pelo Comando, que eles estavam do nosso lado. Graças a Deus! Lá aterraram e apareceram umas viaturas que os levaram. Quando o seu Comandante me cumprimentou eu até corei só de lembrar o que lhe estava a preparar, do que julgo que ele nunca teve conhecimento.

Permanecemos no Aeroporto, julgo eu, todo o resto do dia 25, como o 26 e até o 27. Foi aqui que fomos tendo notícias do desenrolar dos acontecimentos: prisão do Américo Tomaz e rendição do Marcelo Caetano ao Spínola. O aparecimento do General Spínola neste episódio foi-me muito surpreendente, pois sabia que não só o MFA não pretendia ser liderado por ele, como ele não se tinha mostrado muito interessado. Só mais tarde é que vim a saber da história da rendição do Marcelo no quartel do Carmo.

Durante estes dias em que estivemos no Aeroporto muita gente veio festejar, gritar pela Revolução. Enfim a Revolução estava claramente ganha, o Regime tinha caído e a alegria tinha tomado conta dos portugueses. Posso dizer que julgo que nunca comemos tão bem na tropa como enquanto aqui estivemos, tantos eram os presentes e apoios que recebemos. Lembro-me que os festejos terão tomado uma dimensão talvez exagerada, que temi perder o controlo da Companhia. Mas enfim nesta fase a prontidão militar já não seria tão prioritária e os meus rapazes, depois de tanta tensão pelo que passaram, bem mereciam alguma recompensa. Como se a glorificação de todos os populares que ali foram fosse pouco, soube posteriormente que algumas senhoras entusiasmadíssimas, também decidiram festejar com alguns dos meus soldados de modo bastante mais íntimo. E viva a Revolução!”

Este testemunho do nosso comandante, deixa claro que os preparativos e toda a ação da Companhia de Caçadores 4246/73, foi executada de forma muito rudimentar, mas, claramente, com muita eficácia. Pode dizer-se que numa desorganização evidente, de alguma forma previsível e compreensível, tudo acabou por funcionar muito bem!

Enquanto decorria a revolução, com o grosso dos efetivos da Companhia nela evolvidos, os militares não operacionais, ficaram no Campo Militar de Santa Margarida e como o segredo da operação era a alma do negócio ... os que ficaram não sabiam bem o que estava a acontecer mas, depois de terem tomado conhecimento de que estava a decorrer uma revolução para derrubar o governo e o regime, foram ocupar os seus postos, pois havia funções para desempenhar.

No nosso caso, a noite do dia anterior e o dia 25 de abril foram passados desta forma:

“A noite de 24 para 25 de Abril de 1974 não foi uma noite como todas as outras, mas também não foi muito diferente. Todos nós ocupamos o nosso tempo livre de forma muito igual ao dos dias anteriores: os sportinguistas a verem o seu clube jogar para atingir as meias-finais de uma competição europeia e os não sportinguistas a entreterem-se entre o cinema, a sala dos militares ou uma saída fugaz até ao Tramagal ou mesmo Abrantes, as localidades mais próximas de Santa Margarida, onde estávamos aquartelados a fazer o IAO - Instrução de Aperfeiçoamento Operacional para uma missão em Angola.  A diferença começou a notar-se quando constatamos a presença do nosso comandante e de todos os restantes oficiais da Companhia. Esta situação só era normal quando se encontrava agendada uma qualquer instrução noturna, que não era o caso. Porém, como a Companhia estava a preparar-se, em termos operacionais, para a guerra no ultramar, uma vez que estávamos mobilizados para ir para Angola, podia ser razoável que se realizasse uma sessão noturna, não prevista.

Cerca das 23h45 um dos oficiais da companhia dirigiu-se à caserna, juntamente com alguns dos futuros furriéis (na altura ainda Cabos Milicianos), acordando todos os militares e informando-os que se tinham que preparar para uma sessão operacional. Como era normal nestas ocasiões, assistiu-se a um burburinho muito intenso e com muitas interrogações à mistura: “o que é que nos estará reservado para esta noite?” – a instrução noturna era dos exercícios mais exigentes, não apenas pela própria exigência do exercício, mas sobretudo pelos locais, orograficamente muito sinuosos e terrivelmente desgastantes, que tinham que percorrer – A novidade nessa noite foi terem recebido, juntamente com a G3 (espingarda automática), cartucheiras com bala real.

No meu caso e de mais meia dúzia de militares, que não tinham que acompanhar estes exercícios operacionais, a noite só foi perturbada pelo natural movimento e tenção que se notava em todos os nossos companheiros operacionais e apenas até à sua saída para a suposta instrução noturna.

O que restou da noite, para os não operacionais, foi de uma total tranquilidade e sono profundo. De manhã, após a alvorada, a nossa grande surpresa foi não termos notado qualquer movimento ou ruído a partir da caserna. Achamos estranho os nossos camaradas não terem regressado da instrução noturna. Não era normal, mas nada fazia supor que a razão era bem diferente daquela que acabou por se verificar.  Aquela meia dúzia de militares, não operacionais, que ficaram no quartel, seguiram a sua rotina normal, com o desfazer a barba, o banho e a toma do pequeno almoço e, no meu caso, pelas 9 da manhã abrir a secretaria para dar início a mais um dia de trabalho. Foi quando estávamos a tomar o pequeno almoço que tomamos conhecimento do que se estava a passar. A televisão não deixava de passar imagens das grandes movimentações militares em Lisboa e das intenções dos que prepararam a revolução. 

Embora não tivéssemos conhecimento da presença da nossa companhia nesta revolução, percebemos que o facto de não terem regressado da suposta instrução noturna se podia estar a dever a uma adesão ao movimento das forças armadas.

Pouco depois de ter aberto a secretaria, chegou o meu chefe, Sargento Pinto, já com muita informação sobre o que estava a acontecer. Foi nessa altura que tomei conhecimento de que a nossa Companhia, comandada pelo Tenente Christian Bastos Andersen, tinha aderido ao movimento e tinha como principal missão evitar que os tanques do quartel de Santarém passassem pela Ponte Marechal Carmona, em Vila Franca de Xira, rumo a Lisboa, numa eventual contrarrevolução. Ficamos a saber que os tanques de Santarém também tinham aderido ao movimento das forças armadas, deixando de fazer sentido que a nossa companhia permanecesse em Vila Franca quando estava a ser necessária numa outra tarefa, também ela muito importante, no aeroporto de Lisboa, para onde se dirigiram ainda nessa manhã e onde estiveram durante três/quatro dias a coordenar todas as ações do aeroporto.

Como o meu chefe era militar profissional achou por bem que, para salvaguardar a sua posição de militar do quadro e, para o caso do processo revolucionário ainda vir a falhar, devia levantar autos a todos e a cada um dos militares da Companhia, com funções de chefia, (graduados) que estavam a participar na revolução. Ele, desse modo, ficava devidamente protegido perante as chefias, embora, pessoalmente, concordasse com a ação que os capitães estavam a tomar.

Foi por isso que passei a manhã do dia 25 de Abril de 1974 agarrado a uma máquina de escrever “Messa”, a datilografar, nas legais folhas azuis de 25 linhas, um texto que em síntese, apontava para a desonra e traição à pátria de todos os meus camaradas graduados. Como depois se veio a verificar, foi um trabalho inglório porque a revolução foi consumada e o meu chefe mandou-me destruir os autos. 

Na parte da tarde, quando já se sabia que não iria haver retrocesso no processo do MFA, o meu chefe libertou-me e aproveitei para vir até ao Fundão. Era dia de feira anual e, por outro lado, sentia uma natural curiosidade sobre como estavam os fundanenses a viver o dia da libertação do nosso país.  

Para chegar ao Fundão apanhei três boleias, uma primeira de Santa Margarida até ao Rossio al Sul do Tejo, uma segunda, deste local até Castelo Branco e uma terceira desde a capital de distrito até à minha terra. No Fundão percebi, nas poucas horas que lá estive, que as pessoas estavam satisfeitas com o que se estava a passar e percebi, também, que os grupos organizados e que trabalhavam na clandestinidade, como o MDP-CDE tentavam mobilizar as pessoas para as reivindicações que aquele Movimento sempre preconizou e que foram expostas nas eleições de 1969 e 1973, ainda que de forma muito básica, visto não haver permissão para grandes campanhas dos movimentos oposicionistas do regime.


No dia seguinte, pelas 7 da manhã, apanhei o comboio que me iria levar até Santa Margarida, cheguei pelas 11h30 e não havia sinal do meu chefe. Tinha-se deslocado ao comando de Tomar, para ser instruído sobre o que estava a acontecer nas forças armadas.


Foi assim o meu dia, no dia 25 de Abril de 1974.”

O país, naqueles primeiros dias depois da revolução, estava a viver dias complicados, com os portugueses a reivindicar o que nunca tinham tido, nos 48 anos antecedentes. As reivindicações eram sobre as mais diferentes atividades da sociedade nacional. Passou a haver algumas atitudes que não dignificavam quem as praticava e dirigidas a pessoas que, ou faziam parte do anterior poder político ou eram empresários e que não ofereciam as condições básicas a que com eles trabalhava. Também os diferentes partidos políticos, constituídos nessa ocasião, se guerrilhavam com excessiva agressividade, contribuindo de forma negativa para as naturais fissuras na sociedade portuguesa.

Entretanto, a nossa companhia, ainda que tivesse francas esperanças de que já não tinha que ir para Angola, continuou a fazer a sua preparação dentro do plano que estava previamente traçado, até que ...

CAPíTULO IV   -   Angola, o destino

Dia 8 de Junho, a C. Caç. 4246/73 embarcou com destino a Luanda para uma comissão de serviço na Região Militar Leste. A saída do aeroporto Figo Maduro em Tires ocorreu por volta da uma da manhã, numa aeronave dos TAM – Transportes Aéreos Militares e chegamos ao aeroporto internacional de Luanda entre as 8 e as 9 horas da manhã.




Depois da habitual burocracia e da recolha dos nossos pertences, subimos para as viaturas militares que já se encontravam no local à nossa espera e fomos direitos ao Campo de Instrução Militar do Grafanil, a estrutura que serve de transição a todas as unidades que chegavam ou partiam da Região Militar de Angola. O nosso estado de espírito era péssimo. Pela nossa cabeça passava tudo o que era mau. Por acaso, tinha à minha espera, para me cumprimentar e para combinar o que seria o nosso primeiro dia em Luanda, um amigo de infância, que prestava o serviço militar na CCS do Regimento de Comandos. Fiquei mais animado.

Uma vez chegados ao Grafanil, depois de ultrapassada a logística de quem chega, nomeadamente a que se relaciona com o local onde se vai pernoitar nos dias que ali tínhamos que ficar, preparei tudo para, a meio da tarde deste primeiro dia em Angola, sair com esse meu amigo de infância, que já estava em comissão de serviço no regimento de comandos, como escriturário da CCS, há cerca de meio ano.

 Nesse final de tarde e noite passei a conhecer um pouco de Luanda, fui jantar com esse meu amigo e mais uns quantos amigos dele, também militares. Lembro-me de ter gostado muito do jantar – não recordo o nome do restaurante – mas não gostei mesmo nada da cerveja. Provei todas as marcas que havia no restaurante, mas decididamente o meu paladar não se deu com nenhuma delas. Lembro que me senti envergonhado por ter passado a ideia de menino mimado, que não gosta de cerveja. Acabei por acompanhar a refeição com um sumo. Nessa noite dormi no quarto desse meu amigo, numa cama de outro militar que se encontrava de férias no Puto. Esse meu amigo estava desarranchado, ou seja: deixou de fazer as suas refeições e dormir no quartel, por consentimento dos seus superiores e por isso tinha um quarto cá fora, que partilhava com outros militares que não gostavam de ficar no quartel.

O cansaço era muito, visto não ter descansado quase nada na viagem de avião e ter tido uma manhã e inicio da tarde muito ocupada com a logística da companhia, mas o sono, que era muito, era perturbado por aquilo que eu pensava serem relâmpagos. De manhã, quando nos levantamos, ao queixar-me que tinha dormido mal por causa dos relâmpagos, o meu amigo disse-me que não tinha havido trovoada durante a noite, o que tinha ouvido eram as bolas do bowling a rolarem nos tapetes da sala de jogo que ficava mesmo por baixo dos quartos.

De manhã apanhei um táxi para o Grafanil, juntei-me ao meu Chefe, 1º Sargento Manuel Pinto, tratamos do que era necessário e a meio da tarde fui ter com o meu amigo ao Regimento de Comandos. Ele saia pelas 17 horas e este horário permitia-lhe ter um part-time num dos cinemas da cidade. Enquanto esperava pela saída dele, apreciei o que um pelotão de comandos estava a fazer para finalizar o dia de instrução militar. Ficou-me na retina que, estando o pelotão todo perfilado, houve um ou dois que não responderam corretamente ao exercício que o oficial, comandante do pelotão, lhes pedia e por isso, todo o pelotão teve que pagar (foram castigados). Foi ali que percebi que havia quem tivesse capacidade, depois de um dia muito exigente, como era a instrução dos comandos, de fazer 80 cangurus seguidos e sem falhas. (cangurus é o termo usado para um exercício militar que consiste em saltar o mais alto que for capaz e baixar-se de seguida: Flexão e extensão de pernas com salto). Eu teria caído para o lado se tivesse que fazer aquele exercício, os militares que o acabaram de fazer pareceu-nos que não lhes custou muito, porque logo a seguir foi dada ordem para destroçar e todos correram alegremente no sentido da caserna como se nada tivessem feito.

Nesse dia, o meu amigo, que estava desarranchado e por isso autorizado a fazer as suas refeições e dormir fora do quartel e que lhe permitia ter um part-time, estava de serviço no bar de um cinema da cidade e por isso só deu para jantarmos e eu, depois, aproveitei para ir ao cinema. No final voltei para o Grafanil, onde passei a noite pela primeira vez com os meus camaradas. No dia a seguir preparamos tudo para a viagem que nos aguardava rumo ao leste de Angola.

Para percorrer os cerca de 1.800 quilómetros, numa viagem épica, que nos levou a atravessar Angola desde o atlântico até à fronteira com a Zâmbia, mais concretamente, ao destacamento da colina do Nengo, um local situado a cerca de 30 km da Vila de Gago Coutinho (Lumbala N’Guimbo) tivemos que usar três tipos de transporte. Primeiro em MVL, camiões de carga, depois passamos para um comboio movido a vapor e terminamos, de novo, em MVL.    O que era o MVL:

 

Em Angola, por falta de uma estrutura capaz de responder às necessidades de militares e civis, foi necessário constituir uma base logística que resultou na criação do MVL, em Luanda, para permitir reabastecer as diferentes unidades militares, espalhadas por todo o país, dos bens que cada um necessitasse.

 

A base logística de Luanda criou um movimento de viaturas pesadas, conhecidas por MVL (Movimento de Viaturas Logística), que funcionava em grupo e eram protegidos por militares qualificados. Dali saiam, de 15 em 15 dias, uma grande coluna com várias dezenas de camiões, militares e civis, que circulavam em comboio, para os mais distantes pontos do país, carregados com os bens que cada unidade militar necessitava, bem como a correspondência de cada SPM (Serviço Postal Militar). Cada viatura tinha um destino pré-definido. Com estes constrangimentos, impostos para uma melhor segurança de todos, os militares fora de Luanda só recebiam correspondência dos familiares e amigos mais ou menos de 15 em 15 dias.

 

Depois de descarregados, os camiões permaneciam nas unidades onde haviam procedido à descarga dos bens, até que o MVL voltasse a passar para que nele fossem reintegrados e regressassem de novo a Luanda. Se algum civil desejasse viajar na sua viatura para uma zona de guerra, só o podia fazer integrando neste movimento.

 



De Luanda saímos na madrugada do dia 11 de junho, em MVL, rumo a Nova Lisboa (Huambo). Apesar de haver um trajeto mais direto para Nova Lisboa, o facto de seguirmos integrados em MVL, o movimento de viaturas, tínhamos que seguir pelo trajeto que melhor pudesse servir todas as unidades militares que ficassem no percurso previamente delineado, dai que o trajeto tenha sido por Viana, Catete, Dondo, Salazar (N’Dalatando), … e daqui para Nova Lisboa (Huambo).

Em razão dos desvios que houve necessidade de fazer, tivemos que percorrer muito mais de 750 quilómetros, por estradas, todas asfaltadas, mas ainda sem pontes edificadas

 

As muitas pontes que havia no trajeto eram em madeira, de largura estreita e fabrico muito rudimentar, que provocava a natural necessidade de os camiões as atravessarem com o máximo dos cuidados. E porque o número de viaturas era elevado, algumas dezenas, as horas de viagem foram substancialmente aumentadas, apesar dos motoristas, habituados que estavam àquelas condições, não abrandarem em demasia o andamento.



Naturalmente, tivemos que parar uma série de vezes, para as refeições e para as necessidades fisiológicas


As refeições nada mais eram do que rações de combate. Foram distribuídas caixas com uma quantidade razoável de enlatados, umas bolachas que bem pareciam de água e sal, mas que não tinha mesmo nada a ver. Eram mesmo deslavadas. A minha maior dificuldade era mesmo abrir os enlatados. Os abre latas que vinham junto, era um objeto que nunca consegui manipular muito bem, felizmente havia companheiros que se entendiam perfeitamente com aquele pequeno dispositivo.

Numa das paragens efetuadas, havia uma grande extensão de terreno, diria, alguns quilómetros, com cultura de ananás/abacaxi. Deu para comer e levar alguns para outras refeições. Chegamos a Nova Lisboa já de noite, fomos instalados no RI 21, Regimento de Infantaria nº. 21, onde jantamos e pernoitamos. Ainda deu para uma saída noturna para visitarmos uma parte da cidade, juntamente com outros companheiros.




No dia seguinte, partimos de comboio para o Luso (Luena). Foram cerca de 600 quilómetros num comboio de passageiros e correio, movido a vapor, ainda assim, dotado de compartimentos que permitia que pudessem dormir/descansar seis pessoas em cada um. Os bancos e as estruturas de dormir eram de madeira, não tinham comodidade, mas era melhor que não ter estas condições. Por ser movido a vapor necessitava de parar algumas vazes para carregar mais lenha para alimentar a máquina. Demoramos mais de 25 horas a fazer esta viagem.

Na frente deste comboio seguia uma máquina que tinha como função detetar e rebentar eventuais minas que o “inimigo” colocasse nas linhas.  A meio da viagem, paramos em Silva Porto (Kuito) cerca de duas horas. Deu para sair um bocado do comboio e, como havia próximo uma unidade militar, fomos até lá para perceber se havia gente da nossa terra. No meu caso havia mesmo. Estava lá o fundanense Veríssimo. Conversamos um pouco e pude perceber o que me esperava nesta nossa comissão de serviço. O Veríssimo, que nós conhecíamos melhor por ser filho de um Polícia de Segurança Pública, com o mesmo nome, efetivo da esquadra do Fundão, deu-me alguma dicas que me ajudaram, psicologicamente, a encarar melhor esta nossa missão.

Chegamos ao Luso (Luena), província do Moxico, Zona Militar do Leste, a meio da manhã do dia 13. Para prosseguir viagem tivemos que aguardar pela chegada do MVL, por isso, ficamos com o dia totalmente livre, que aproveitamos para conhecer a cidade. Pernoitamos no BTR 522 e no dia seguinte, voltamos a carregar os nossos pertences nos camiões e lá seguimos rumo ao Nengo para substituir a Companhia de Artilharia 3514. Separava-nos do nosso destino, cerca de 400 quilómetros.

Como sempre acontecia, a viagem para Gago Coutinho (Lumbala N’Guimbo), foi programada para sairmos o mais cedo possível, até porque o MVL tem horários para cumprir. Recorde-se que o Movimento de Viaturas Logístico, vai deixando nos vários aquartelamentos, por onde passava, os camiões que transportam os bens necessários a cada uma dessas unidades militares e esses camiões e os seus condutores só de lá podiam sair quando o Movimento voltasse a passar, no sentido inverso, para que juntos regressassem a Luanda.

O nosso desejo era, sem qualquer dúvida, chegar o mais rapidamente possível ao nosso destino. Já tínhamos muitas horas de viagem e nenhuma com o mínimo dos confortos e, embora todos fossemos muito jovens o cansaço começava a apoderar-se de nós, ainda que se tratasse mais de um cansaço mental que físico.

Lá partimos rumo ao desconhecido por volta das 9 da manhã. Aguardava-nos uma viagem que iria ter uma duração de mais seis a sete horas. As paragens é que iriam determinar o tempo que iríamos gastar na viagem. Naquela altura nas nossas cabeças passavam os mais variados cenários do que nos esperava, quer em termos de acomodações, quer em logística.

Durante a viagem notamos que nesta zona de Angola existe uma imensidão de primatas que se exibiam nas árvores à beira da estrada. Foi algo divertido ver os macacos a saltares de galho em galho, até para amenizar o nosso estado de espírito. Também na beira da estrada podiam-se ver, em número muito significativo, cabaças. Elas nascem e crescem naqueles locais de forma espontânea.

A cerca de 50 quilómetros do nosso destino tivemos a receção de boas vindas por parte dos militares da companhia que iríamos render, a C. ART 3514, os “Panteras Negras” como gostavam de se chamar. Eram umas 5 ou 6 viaturas pesadas, cheias de militares, que usavam divisas trocadas para nos confundir e que nos escoltaram até ao nosso destino. – Riam-se perdidamente quando algum de nós batia continência a alguém que não tinha a patente que exibiam –. Naturalmente, como sempre acontecia e deve continuar a acontecer, no serviço militar, os velhinhos chamavam-nos de maçaricos e tentavam enganar-nos sobre os mais diferentes pretextos. No caso da C. ART 3514, que estiveram em Angola 27 meses e que construíram as poucas infraestruturas que ali existiam, nomeadamente as instalações para os graduados e cabos especialistas dormirem, o bar dos graduados e a secretaria. –Estas instalações foram construídas com os bidões vazios de alcatrão que a Tecnil usava na construção das estradas. – Eram instalações rudimentares, mas era melhor que dormir em tendas de campanha, como aconteceu com eles próprios nos primeiros meses de comissão de serviço.

A passagem por Gago Coutinho (Lumbala N’Guimbo) foi de festa para eles e de mais dúvidas para nós. A vila era muito pequena, com meia dúzia de edifícios e muitas palhotas. Eram os Militares que se encontravam no quartel ocupado pelo Batalhão de Artilharia 6320  que davam vida à vila.







Finalmente chegamos ao nosso destino, a Colina do Rio Nengo. Com a quantidade de viaturas que estacionaram no aquartelamento não deu para perceber, de imediato, o que seria a nossa casa por um largo período de tempo.

Apesar de já estarmos no nosso habitat, ao jantar continuamos a comer ração de combate, visto que a cozinha ainda estava ocupada pela C.ART 3514. Apenas os nossos graduados tiveram direito a comer juntamente com os graduados daquela companhia.

A Companhia de Artilharia 3514, que esteve em comissão de serviço em Angola 27 meses, já tinha tudo preparado para partir na manhã do dia seguinte, exatamente nas mesmas viaturas MVL, que nos haviam levado para o Nengo. A propósito da despedida deste lugar, os militares da CART 3514 cantaram-nos uma marcha para nos encher de moral. Em tom de superioridade, cantaram os seguintes versos:

Os Maçaricos vão gostar de morar;
Nas casernas que vamos deixar
Vamos embora eles ficam sós
Fartos desta guerra já estamos nós

Aqui vai a Artilharia
A marchar sem parar
Ai se chega aquele dia
E nunca mais aqui voltar

Os Maçaricos vão gostar de morar;
Nas casernas que vamos deixar
Vamos embora eles ficam sós
Fartos desta guerra já estamos nós

Do Ninda para o Chiúme
Passa-se á curva da morte
Para sobreviver 27 Meses
Foi preciso muita Sorte

Os Maçaricos vão gostar de morar;
Nas casernas que vamos deixar
Vamos embora eles ficam sós
Fartos desta guerra já estamos nós

No dia seguinte, os Panteras Negros partiram e nós ficamos como queríamos, com a nossa própria estratégia, no aconchego do nosso “lar”.

 NENGO




A companhia que a C. Caç. 4246/73 foi substituir no dia 14 de junho de 1974, na colina do Rio Nengo a C.Art.3514, que chegou a este local em 1972, com todo o espaço destinado ao destacamento coberto de mato. O que conseguimos apurar foi que a primeira ação tomada foi limpar o espaço e instalar as tendas de campanha onde funcionavam todos os serviços e aposentos. 

Como as condições não eram as adequadas, um grupo de militares desta companhia decidiu propor construir um aquartelamento mais acolhedor e funcional. Colocava-se a questão da manipulação do terreno. A companhia não tinha máquinas de terraplanagem e isso era um problema, até que o assunto foi colocado aos responsáveis da Tecnil, a empresa que tinha a função de construir a estrada de Gago Coutinho para Ninda e fronteira da Zâmbia. Num determinado dia apareceram as máquinas que fizeram a terraplanagem do espaço, criando as condições para se começarem as construir as instalações fundamentais, aquelas que nós fomos ocupar, como: secretaria, casernas, refeitório, bar, oficinas auto, etc. Os materiais utilizados foram troncos de árvores cortadas nas matas envolventes e as paredes foram edificadas com chapas de bidons de alcatrão, depois de cortados e endireitados com os cilindros de compactação, o chão foi coberto por argamassa de cimento e os tetos com chapa ondulada de zinco, cobertos de capim para isolamento térmico. Esta técnica, de isolamento térmico, foi, como constatamos, utilizada nas paredes de chapa de algumas instalações, como zonas de descanso e refeitório.



Por falar em refeitório, devemos dizer que nem todos tomavam as refeições no refeitório geral, os especialistas criaram o seu próprio refeitório. Dois pipos, uma prancha em madeira e lá estávamos nós, os criptos e os telegrafistas a tomas as refeições. Era um lugar ao ar livre coberto por capim. De quando em vez passava por lá o “comboio do sessa” que mais não era que ventos fortes que levantavam uma poeira intensa. Para proteger os alimentos tínhamos que nos debruçar sobre os pratos para evitar comermos os alimentos com quantidades excecionais de pó. 

Quando chegamos ao Nengo, todos nós achamos as instalações muito rudimentares, mas quando nos comunicaram de como tudo aquilo já tinha sido, passamos a dar muito mais valor aquelas instalações. A iluminação era suportada por geradores de boa potência e a alimentação tinha no vagomestre o decisor diário do que podíamos comer a cada refeição, numa gestão que ele próprio e o cozinheiro Campos tinham que fazer dos bens alimentares que a Manutenção Militar nos enviava a cada 15 dias.

                    



Uma boa solução para que a nossa alimentação fosse quase sempre muito boa era o recurso à caça. Todas as semanas saía um grupo, normalmente composto de duas viaturas berliet e uma dúzia de homens, sempre liderados pelo comandante de companhia, que tinha a missão de alvejar as presas, com uma espingarda Mauser, que utilizava balas 7,62, iguais às da G3. Uns dias era-se bem-sucedido e outras regressava-se com duas ou três pequenas presas.  Eu só por uma vez fiz parte do grupo que saiu para a caça. Nesse dia regressamos com uma palanca, dois porcos espinho e uma cabra. Foi uma boa caçada. O Albano Lobo, o vagomestre, teve carne para gerir durante alguns dias.


As instalações do Nengo não tinham sanitários, o mato envolvente era a solução e a higiene era acautelada com a colocação de bidons por cima de uma estrutura em madeira e que servia de cabina de chuveiro. A água era recolhida, diariamente, no rio Nengo por uma cisterna ligada a Unimog. A água do rio Nengo, servia para a alimentação e para consumo de cada um de nós. Tentamos filtrar ou ferver, quando era para consumo



 

 



A nossa roupa era lavada no rio Nengo por um grupo de jovens que vinham todas as semanas de Gago Coutinho. Se bem me lembro, faziam o trajeto a pé. No meu caso era o Domingos, um jovem com 14 anos, muito educado e de uma humildade real. Levava a roupa pela manhã e quando a meio da tarde regressava já vinha toda seca e bem dobrada. Pagávamos uma verba e dávamos de comer, do que houvesse na altura.

 

 



A secretaria era o meu local de trabalho, tudo passava por este “edifício”, era lá que trabalhava o nosso comandante de companhia, o primeiro sargento e nós próprios. Contávamos com a colaboração de dois soldados, um funcionava como ordenança do comandante (Carlos Carreira) e outro como ordenança da secretária, (Manuel Pires). O mobiliário era do mais rudimentar possível: três secretárias, para comando, chefe de secretária e para mim. Uma máquina de escrever messa, um duplicador de estêncil e pouco mais.

Era na Secretaria que os nossos camaradas depositavam o correio e era lá que nós, enquanto chefe do SPM – Serviço Postal Militar 1296 o distribuíamos. Como já deu para perceber, o correio só seguia e só era recebido, mais ou menos de 15 em 15 dias. Por vezes, muito poucas vezes, quando havia necessidade de vir um avião a Gago Coutinho, por qualquer razão, em algumas ocasiões trazia o correio e nesse caso o tempo era mais reduzido. Era uma alegria imensa quando chegava a mala com a correspondência. Um simples aerograma ou uma simples carta era motivo para regozijo, mas quando vinha uma encomenda e nela vinham aquelas iguarias que todos gostavam, era certo e sabido que havia festa no seio do grupo onde quem a recebeu estava inserido. Na hora em que tinha que distribuir o correio, percebia-se que quem recebia ficava maravilhado e quem não recebia ficava numa completa tristeza.

Era na secretaria que se faziam os planos semanais, para todas as tarefas a desempenhar pelos 4 pelotões que compunham a companhia e era lá que se faziam as Ordens de Serviço, que tinham que espelhar tudo o que se gerava na companhia.

Os quartos dos graduados e especialistas eram básicos, mas tinham as condições necessárias. O meu quarto era partilhado por mais três companheiros, ficava ao lado do bar dos graduados e tinha o essencial, bem como luz elétrica.

A C. Caç. 4246/73, nos três meses que esteve no Nengo, teve como missão proteger os trabalhadores da Tecnil, a empresa que estava a construir as estradas de Gago Coutinho para Ninda e de Gago Coutinho para Sessa. Para que essa proteção fosse eficaz foi necessário deslocar três pelotões, constituídos por cerca de 35 efetivos cada, para outros tantos destacamentos. Um na povoação de Sessa, que ficava a cerca de 120 quilómetros da sede (Nengo), comandado pelo Alferes António Martins, outro em Ninda, comandado pelo Alferes Emanuel Gravato, que ficava a cerca de 55 quilómetros da sede e um outro na Pedreira do Nengo, comandado pelo Alferes Manuel Sousa, bem mais perto da sede, a cerca de 8 quilómetros. No destacamento da Pedreira, fazia-se a proteção dos trabalhadores que tinha como missão a exploração e desmonte de granito, britagem de inertes e central de betuminosos para asfaltarem as estradas.

Na Colina do Rio Nengo, o tempo disponível era muito, mas não havia muito como o entreter, escrevíamos às namoradas, jogávamos às cartas, normalmente à lerpa, e pouco mais podíamos fazer, não havia mesmo onde ocupar o tempo. O meu trabalho na secretaria não me ocupava muito tempo, algum do que sobrava, cumpria-o a escrever cartas a familiares, ou mesmo mulheres ou namoradas de alguns companheiros, os que sentiam ter dificuldades de se expressar por escrito, mas mesmo assim sobrava-me muito tempo, que eu aproveitava para escrever três e ás vezes quatro aerogramas à minha namorada, mesmo sabendo que o correio só seguia de 15 em 15 dias e, em alguns dias, jogava com os amigos.  Havia dias que guardava para me deslocar ao Rio, para tomar uma banhoca e para testar a minha pontaria, levava a arma que me estava distribuída, a G3 e um carregador de balas. Normalmente, gastava um carregador, vinte munições, com tiro ao alvo. Entendia que era necessário manter-me treinado em matéria de tiro, visto que, não sendo operacional, tinha que estar preparado para o desse e viesse. Por outro lado, como na recruta, sempre fui um atirador de primeira, acho que se chamava de atirador especial, eu queria manter esse estatuto.



Ninda, pertence ao município dos Bundas, com sede na vila de Gago Coutinho (Lumbala N’Guimbo) e Província do Moxico, fica próximo da fronteira com a Zâmbia e dista 85 quilómetros da sede do município.

Sessa era o destacamento que ficava mais longe do aquartelamento do Nengo, pertence, também, ao município dos Bundas, na Província do Moxico. Esta comuna angolana esta a 86 quilómetros de Gago Coutinho (Lumbala N’Guimbo).

Nem tudo foram rosas, a nossa estadia na Região Militar Leste. Numa daquelas viagens de laser, que os militares do aquartelamento faziam ao destacamento da Pedreira, ocorreu um acidente que mexeu com todos nós. Um grupo foi fazer um jogo de futebol com os militares daquele destacamento e no regresso, a Berliet deu um salto imprevisto na picada e o nosso companheiro, ajudante de cozinheiro, Coriolano Gomes, foi projetado da viatura, sofrendo lesões graves que o obrigou a ser evacuado, primeiro para o hospital central de Luanda e depois para a metrópole.


A nossa missão, de proteger os trabalhadores da Técnil, foi quase sempre bem-sucedida, contudo, tivemos um revés, que agitou as hostes. Numa das poucas ocasiões que as viaturas da Técnil se deslocavam com trabalhadores, sem a proteção dos nossos operacionais, uma força da FNLA, disparou um RPJ contra a viatura, resultando daí a morte de 10 trabalhadores, totalmente carbonizados. Foi dos momentos de maior constrangimento por que passamos na nossa comissão de serviço em Angola.

 

A TECNIL tinha a sua sede na Vila de Gago Coutinho e tinha como responsável técnico administrativo de obra um fundanense, João Caixinha, que nós conhecíamos muito bem, mas com quem não tínhamos qualquer relação de amizade. Numa das visitas que fiz à vila, num qualquer fim de semana, encontrei-o, por mero acaso, e, naturalmente, fui cumprimenta-lo. Foi uma pequena festa – fazíamos sempre uma festa quando se encontravam conterrâneos – que terminou com um convite para voltar na semana seguinte para almoçar em sua casa. Como combinado, no domingo seguinte lá fui ter com o Caixinha, dirigi-me à secretaria da Técnil, o local que havíamos acordado para nos reencontrarmos e dai fomos para uma pequena estrutura, composta de um quarto, wc e o hall de entrada que servia, também de sala e cozinha. Foi um almoço muito agradável e a ementa foi uma galinha cozinhada por uma colaboradora africana, que estava deliciosa. Passamos um bom bocado da tarde, até os camaradas que também quiseram passar a tarde em Gago Coutinho se disporem a regressar ao Nengo. Acho que só nos voltamos a encontrar mais uma vez, ele lá ficou e eu e a minha companhia regressava a Luanda, contudo, alguns anos mais tarde encontrei-o nas instalações da empresa Casais, no Fundão, onde desempenhava funções idênticas, de Técnico administrativo das obras que a empresa tinha na Cova da Beira.

Como já foi salientado o aquartelamento da Colina do Rio Nengo, estava localizado a três quilómetros do rio que lhe dava o nome e entre as Vilas de Gago Coutinho (a 30 kms) e Ninda (a 55 kms). Como alguns camaradas referiam: “estamos no meio do nada”. Na verdade, nada havia num raio bem significativo, apenas mato e mais mato. Apesar da região estar repleta de guerreiros da UNITA e FNLA, nunca sentimos a sua presença física. Alguns camaradas testemunharam a presença de alguns desses guerreiros nas matas junto aos rios, mas nem uma única vez manifestaram quaisquer intenções de nos atacarem. Ao que conseguimos apurar mais tarde, quer os guerrilheiros da UNITA quer os da FNLA entendiam que a nossa missão não era de guerrilha, mas sim de proteção de trabalhadores que estavam a criam melhores condições para o progresso do país deles. Por isso, em situação alguma mostraram querer ser agressivos.

O aquartelamento não tinha vedações muito rigorosas, tinha inclusive muitas aberturas por onde saiamos a fim de nos aliviarmos no mato. No lado esquerdo, quando se entrava na unidade, eram as edificações, que tinham sido erguidas, como a cozinha, refeitório, acomodações de graduados e especialistas e bar dos   graduados, que serviam de fronteira com o mato. O mesmo se verificava com o fundo do aquartelamento, onde os edifícios da secretaria e comando e aposentos dos oficiais, serviam esses limites fronteiriços. No lado direito as oficias auto, as tendas de campanha, onde se instalavam os soldados operacionais e a padaria eram vedadas por rede aramada. As tendas de campanha tinham uma dimensão razoável e que permitia que lá dormissem 12 dos nossos camaradas. Cada tenda tinha 6 beliches de duas camas.



Para a proteção de todo o espaço existiam quatro torres de vigia, onde, a partir das 19 horas havia militares em vigilância rotativa de 4 horas, até ás 7 da manhã, quando se procedia à alvorada e ao içar da bandeira. A função de içar e arriar da bandeira foi por mim exercida na grande maioria dos dias que estivemos no Nengo. Era um exercício que gostava de desempenhar. Gostava do som do clarim tocado por um dos vários corneteiros da companhia.

A nossa missão no leste de Angola estava a chegar ao fim. Recebemos ordem para deixar o aquartelamento e regressarmos a Luanda. A proteção da Técnil passava a ser feita pelo batalhão que estava estacionado na Vila de Gago Coutinho (Lumbala N’Guimbo). Com o aproximar da independência de Angola e das diligências que os políticos estavam a fazer juntos dos três movimentos de libertação, para a transição de poderes, deixou de fazer sentido manter o aquartelamento do Nengo, quando havia um batalhão que agora já não tinha que ter a preocupação das operações militares, podendo continuar a dar todo o apoio e proteção à empresa que estava a construir as estradas naquele território angolano, por isso, tivemos que desmantelar tudo na Colina do Rio Nengo. Tínhamos alguns dias para embalarmos todo o espólio da companhia. O MVL chegaria poucos dias depois. Quando chegou o MVL, as nossas próprias viaturas já estavam carregadas, faltando pouca coisa, que acabamos por carregar nas viaturas MVL e a 3 de setembro de 1974, partimos para Luanda.



A viagem de regresso à capital foi toda ela feita com as nossas próprias viaturas e mais uma meia dúzia de viatura do MVL (movimento de viaturas logístico). Do Nengo para Luanda, passamos por Gago Coutinho (Lumbala N’Gimbo) onde deixamos alguma da nossa logística, Luso (Luena), Henrique Teixeira (Saurimo) Malange, Salazar (N’Dalatando), Dondo e Luanda. Foram cerca de 1600 kms

A viagem correu dentro do que estava projetado, com as paragens necessárias e com tempo ameno, nem muito calor nem arrefecimento excessivo, até que, a cerca de 40 kms de Malange começou a chover com grande intensidade e quando já estávamos muito próximos daquela localidade começaram relâmpagos e trovoada com tal violência, que metia pavor. Eu fiz a viagem numa viatura que transportava os colchões da companhia – acho que não era a única –  sei que me aconcheguei debaixo de um dos colchões para evitar que aquelas imagens horrendas mexessem comigo de forma negativa. Felizmente, quer a chuva quer a trovoada não duraram muito tempo, não sei precisar, mas não mais de uma hora. Devo dizer que até hoje não presenciei trovoada com tamanha intensidade.

Nessa segunda noite de viagem, a maioria dos meus camaradas dormiu na unidade militar de Malange, mas eu preferi ficar na viatura, que estava estacionada dentro do aquartelamento, visto que tinha algum conforto, com os colchões e cobertores que transportávamos. No dia seguinte, logo pela manhã, depois do pequeno almoço, que nos foi servido pelo quartel daquela localidade, partimos para a última etapa, rumo a Luanda.



No dia 6 de setembro chegamos a Luanda e fomos instalados no quartel do ATmA – Agrupamento de Transmissões de Angola, como companhia de intervenção, integrada no COPLAD – Comando Operacional de Luanda. Um resumo, a tarefa que a C. Caç 4246/73 passava a ter era de policiar as zonas problemáticas de Luanda

A quartel do ATmA tinha todas as condições, boas acomodações para os graduados, uma boa caserna, um bom refeitório, uma ótima secretaria e boas instalações para o comando. A secretaria era um espaço amplo, bem arejado e com muita luz natural. Tinha todas as condições para se trabalhar. Quem entrava na secretaria sentia e referia-se, com agrado, ao perfume a fruta.  O cheiro a fruta passou a ser uma marca registada da nossa secretaria, na nossa passagem por aquele quartel. Todas as semanas comprava cinco abacaxis e um cacho de bananas com cerca de 20 bananas. Eram as bananas pintadinhas, já maduras, e por isso mais baratas. As quitandeiras instalavam as suas bancas mesmo em frente ao quartel e, por 10 escudos (agora 5 centavos) comprávamos 4 abacaxis e elas ofereciam um e por mais 2$50 um cacho de bananas. Como o jantar no quartel eram muito cedo, por volta das 18h30, quando chegávamos do cinema ou das nossas outras saídas noturnas, sabia bem comer um abacaxi ou umas bananas. Nunca mais comi tanta banana e abacaxi.

O Quartel da ATmA oferecia instalações onde dava gosto trabalhar, ainda que o rigor fosse uma imposição do comando. Tudo tinha que ser feito segundo os padrões militares. Para os períodos de lazer, o quartel oferecia uma boa sala de convívio, com vários jogos disponíveis, um campo de futebol, um ringue onde se podia jogar futebol de salão ou qualquer outro desporto, como basquetebol, andebol ou mesmo hóquei em patins e estava localizado numa zona da cidade que permitia ir a pé para quase todo o lado, restaurantes, bares, cinema e instalações de atividade desportiva.

Ao lado do quartel estavam as instalações do ASA, o clube dos supostos trabalhadores do aeroporto, que participava no campeonato nacional de futebol angolano. Acho que só lá fui uma vez a ver um jogo. Um pouco mais longe, estava o Ringue onde jogava o FC Vila Clotilde, as partidas do campeonato nacional de basquetebol. –  Este clube que foi fundado em 1953 e era uma filial do Barreirense do Barreiro, só se dedicava a esta modalidade e o Ringue da altura, mantém ainda hoje toda a sua atividade com os escalões de formação, mas os jogos do campeonato angolano de séniores são agora disputados num pavilhão com capacidade para 1500 pessoas. –  Quando ali havia jogo, o barulho dos adeptos fazia-se ouvir bem longe e muito mais em toda a zona envolvente. Para além do futebol esta era a modalidade que mais adeptos movimentava e tinha os adeptos muito fervorosos. Tive sempre muita curiosidade de ir ver jogos naquele recinto, mas nunca aconteceu.

O ATmA ficava ao lado do aeroporto de Luanda, local onde eu passava algum tempo. Ia lá tomar café, ainda que o café que ali se bebia não fosse grande coisa, depois do almoço e nos dias que não fosse ao cinema nas instalações da Força Aérea, era lá que me entretinha, a ver as pessoas que chegavam e as partiam dos aviões comerciais.

A alimentação na Unidade era muito boa, em qualidade e quantidade, com uma higiene que não era normal nos quartéis por onde já tinha passado. Foi no seu refeitório que passei a consoada do Natal de 1974. Foi uma refeição com tudo o que é tradicional, Batatas e couves com bacalhau e bolo rei como doce e mamão como fruta. No final da refeição, formaram-se vários grupos que saíram em direção à baixa de Luanda. A distância era significativa, mas nós tínhamos todo o tempo do mundo e o cansaço, para que tem vinte e um ou vinte e dois anos, não se fazia sentir. Pela meia noite, o grupo onde me incluía, com cerca de 10 camaradas, fomos tomar banho, todos nus, numa das praias da Ilha. Não havia ninguém, só mesmo nós. Aliás, nas ruas de Luanda, por onde passamos, não se via viva alma. Todos faziam a sua consoada no conforto das suas habitações. Também foi lá que passamos a noite de passagem de ano de 1974 para 1975.

Durante o período que estive no ATmA, tive oportunidade de ganhar uns trocos na Feira Popular que estava instalada bem próximo do aeroporto. Aos sábados de tarde, trabalhava num bar, das 14 às 18h30. O proprietário queria que ficasse para a noite, mas entendi, sempre, que o melhor era terminar pelas 18h30, desculpando-me que entrava de serviço às 20 horas. Os meus amigos que ficavam a trabalhar durante a noite, por duas vezes foram assaltados e ficaram sem o dinheiro que tinham ganho. Eu cobrava por aquelas horas 150 escudos, que na altura era bom dinheiro. Só para se ter uma ideia, uma refeição num restaurante custava cerca de 20 escudos.


No ATmA, pela sua localização, permitia ir muitas vezes ao cinema Miramar, ou outro que não o da força aérea. O da Força Aérea tinha ótimas condições, onde íamos, na grande maioria das vezes, mas faltava a componente feminina. As vezes que optávamos por ir ao Miramar, tinha como objetivo vermos o filme que estivesse em cartaz, mas, também, para apreciar a paisagem, leia-se: ver as "garinas" angolanas. 

Nas nossas saídas noturnas, quase sempre optávamos por nos vestirmos à civil. Como não podíamos sair do quartel assim vestidos, contratei os serviços de uma senhora, que morava em frente ao quartel, para me lavar e passar a roupa e para me deixar mudar de vestuário em sua casa sempre que fosse de meu interesse trajar à civil. A senhora tinha a paciência de nos receber em sua casa quando saiamos do quartel e quando regressávamos, muitas vezes já depois da meia noite.

Algumas situações que hoje achamos engraçadas e que ocorreram no ATmA. Uma das obrigações que tínhamos neste quartel era formar para ir para o refeitório. Normalmente era eu quem apresentava a companhia ao oficial de dia. Só depois de apresentar a companhia é que o oficial mandava seguir para o refeitório. Num determinado dia tinha vestido as calças do fardamento nº. 1, o de saída e tinha uma T’Shirt branca, como não tinha à mão a camisa de saída, vesti um dólmen camuflado e coloquei o cinturão por cima. Quando apresentei a companhia o oficial de dia perguntou-me se estava no Biafra para me apresentar vestido daquela maneira. Realmente, foi uma imprudência de minha parte e uma escolha de mau gosto.

No único quartel em que tive que dormir na caserna, foi no ATmA, aqui o pessoal operacional levantava-se bastante cedo, por volta das 6h30, no meu caso, como só tinha que estar na secretaria pelas 9 horas, ficava mais algum tempo na cama. Como o dia em Luanda nascia muito cedo, pelas 5 da manhã e com sol muito intenso, a forma que encontrei para não ter aquela claridade a bater-me nos olhos era por a almofada por cima da cabeça e tapar-me totalmente com o lençol. Em duas ou três ocasiões, alguém necessitou falar comigo, mas, ainda que tivessem procurado na caserna, não me encontraram por estar todo enrolado na cama.

Estivemos no ATmA até fevereiro de 1975, mas, por decisão superior, tivemos que deixar o bem bom para irmos ocupar as instalações daquela que tinha sido a 4ª Repartição. É verdade que ficamos mais à vontade, sem o rigor militarista do ATmA, mas perdemos a centralidade.

Aqui tudo voltava a ser executado pelo nosso pessoal. Os nossos cozinheiros e padeiros voltaram a ter que fazer a nossa alimentação e todo o trabalho dentro da Unidade era de nossa responsabilidade, ou seja, passamos a ser completamente autónomos em termos de logística.

As instalações da 4ª REP. ficavam na estrada de Catete, tinha em frente o cemitério de Santa Ana, ainda que a uma distância razoável vistos termos quatro faixas de rodagem e um largo com dimensões razoáveis, a separar-nos e ao lado tínhamos a Polícia Militar. Um pouco mais acima daquela estrada, a cerca de 2 quilómetros, estava o Jumbo. O primeiro grande hipermercado que conheci. Na metrópole ainda não tinha sido construído nenhuma grande superfície e Luanda já tinha uma com grande dimensão. Inicialmente havia de tudo para lá se comprar, mas depois, a partir de abril, já só havia produtos de primeira necessidade e mesmo estes racionados.

Nas instalações da 4ª REP. passamos por acontecimentos muitos diferenciados, desde ter rebentamentos de morteiros RPJs nas instalações, tiros e balas perdidas fatais, prisões de todo o tipo de bandidos, ladrões, violadores, etc., que acabavam por ser sovados e conduzidos à prisão e numa fase mais adiantada da nossa comissão de serviço, o nosso quartel serviu para acolher muitos portugueses, que vinham dos mais variados pontos de Angola e que ali ficavam a aguardar serem repatriados para Portugal, os chamados “retornados”,  O quartel passou a ser um grande armazém de caixotes de madeira, de todas as dimensões, com os pertences dos referidos “retornados” que seriam transportados para o Porto de Luanda quando houvesse um barco para os levar para a metrópole. As nossas instalações passaram a ser partilhadas por famílias que aguardavam ser repatriadas. Estas viviam, durante esse período, em tendas de campanha instaladas na parada, em condições mesmo muito degradantes. Tivemos ocasião de conhecer famílias que, segundo nos confessaram, viviam em moradias de grande qualidade e que, devido à independência de Angola, que iria acontecer a 11 de novembro, tiveram que deixar tudo para trás.. Foi muito complicado viver e partilhar o nosso espaço com homens e mulheres de todas as idades e crianças, de ambos os sexos. Nem nós nem eles estávamos confortáveis.

Naquele período o estado português organizou uma ponte aérea para levar todos os portugueses que quisessem regressar à metrópole. As pessoas seguiam de avião e os bens seguiam de barco. A revolta que mais se evidenciava nas pessoas era terem pouca informação sobre quando tinham avião para regressar. Todos os dias eram vários os aviões que chegavam a Luanda e partiam cheios para Lisboa, mas nunca eram em números que pudesse satisfazer todos.

As operações da nossa companhia eram agora partilhadas com efetivos militares dos três Movimentos de Libertação de Angola, MPLA, UNITA e FNLA. As viaturas que saiam para patrulhamento eram comandadas por um dos nossos oficiais e por um furriel, que comandava uma secção de cinco dos nossos homens, os Movimentos incorporavam, cada um, três dos seus efetivos. Este sistema de patrulhamento funcionava bem, mas era difícil de gerir em termos de logística.

Após 10 meses de presença em Angola, pude vir gozar um período de 35 dias de férias a Portugal. Esses trinta e cinco dias serviram para matar saudades da família, da namorada e dos amigos. Permitiu ter uma ideia mais avalizada de como estava a processar-se a nova vida dos portugueses, um ano depois de ter acontecido a Revolução dos Cravos.


Como o período de férias foi de 26 de março a 30 de abril, permitiu-me, também, assistir às primeiras eleições livres em Portugal e ver a felicidade estampada no rosto das pessoas, aguardando, em filas intermináveis, a sua hora de votar nas pessoas que as iriam representar na Assembleia Constituinte.

 

No mesmo período de férias tive oportunidades de conceber uma das minhas grandes preciosidades. A minha filha. Num qualquer dia de Abril de 1975, de forma descuidada, o amor ajeitou as coisas de forma a dar-me  um eterno momento de felicidade, quando, nove meses depois nasceu a minha filhota.

 

O regresso, para completar a comissão de serviço, aconteceu num período muito conturbado, em Angola. Os movimentos políticos, que já haviam acordado a forma como devia acontecer a transição, desentenderam-se e o que aconteceu foi que entre eles, todos os dias havia grandes agressões, com bombardeamentos direcionados aos quartéis generais de cada um deles. O curioso da coisa é que esses movimentos participavam conjuntamente, com a nossa companhia, nas ações de patrulhamento nos bairros mais problemáticos, e nessa tarefa entendiam-se bem.

No dia que cheguei de férias, fui colocar toda a minha bagagem no quartel e, de seguida, desloquei-me para o centro da cidade para entregar algumas encomendas a pessoas, naturais do Fundão e residentes em Luanda, enviadas, através de mim, por alguns familiares. Foi um dia que me pareceu normal e igual a tantos outros que vivenciei antes das minhas férias, só quê, quando ao final do dia pretendia regressar ao quartel deparo-me com uma situação que de todo não estava à espera. Ao mandar parar alguns táxis para me levar ao meu destino, todos os taxistas me diziam que não podiam fazer o serviço por que naquela zona estavam a acorrer grandes bombardeamentos entre os três movimentos de libertação. Estive das 18 às 21 horas a tentar arranjar meio de transporte para me levarem de regresso ao quartel, que ficava na estrada de Catete, mesmo em frente ao cemitério de Santa Ana, sem resultado. Passaram algumas viaturas militares que, apesar de lhes fazer sinal para pararem e lhes colocar o meu problema todas, com exceção de uma, pura e simplesmente não paravam. A que fez o favor de parar, o chefe de viatura e o próprio condutor não se mostraram disponíveis para me levarem e, em face dos regulamentos, não o podiam fazer por na altura trajar à civil. Ainda assim, lá os consegui convencer. Tive que me sentar entre os militares que seguiam na viatura, no lado da estrada, isto por que iríamos passar em frente a um quartel da Policia Militar e estes eram muito rigorosos no cumprimentos dos regulamentos militares.

Uma vez no quartel e, visto ter feito muitas horas seguidas sem descansar, decidi tomar um duche e ir dormir. O meu quarto era mesmo ao lado da secretaria. Entretanto, o Oficial de serviço, Alferes Fernandes disse-me que iria ocupar a minha secretária para escrever à sua namorada.

Cerca de duas horas depois, de ter adormecido, sou chamado para ajudar a tratar de uma ocorrência gravíssima. O oficial de serviço, que tinha ficado na minha secretária a escrever à sua namorada, uma dinamarquesa, deparou-se com uma bala perdida que se foi anichar na coluna de madeira que ficava nas suas costas e, ato continuo, levantou-se e deslocou-se à porta da secretaria para tentar perceber o que estava a acontecer e, ali chegado, foi atingido com uma bala na cabeça. Era mais um dos muitos projeteis perdidos disparados sabe-se lá de onde. Imediatamente tratei da documentação referente à evacuação do Alferes Alberto Fernandes, que entretanto, já tinha sido transportado para o hospital, em viatura da própria companhia, tendo enviado estafeta com a mensagem sobre o ocorrido, a dar conta da tragédia que nos havia batido à porta, aos nossos graduados, que dormiam fora do quartel. Todos moravam no mesmo prédio, em diferentes apartamentos partilhados.

Este facto criou em mim um tal estado de receio que, nessa mesma noite decidi deixar de dormir no meu habitual quarto e mudar-me para debaixo de um vão de escadas do edifício da 4ªRep., em local onde só cabia um colchão. No que restou daquela noite fatídica, tive sempre a sensação de que o nosso quarto, que tinha uma pequena janela para uma rua lateral, iria ser atacado a qualquer momento. A paranoia estava a tomar conta de mim e por isso, no dia seguinte mudei-me para o local referido.

Na manhã do dia seguinte, o primeiro dia de serviço após ter regressado de férias, levou-me a tomar outras decisões, que na altura achei da maior conveniência, uma delas foi de não sair do quartel, sob qualquer pretexto, até ter como garantia que a situação se havia alterado e que já era seguro sair.  Como eu era o chefe de SPM- Serviço Postal Militar, que me obrigava a deslocar, diariamente, ao centro da cidade, prolonguei a credencial, que tinha emitido em nome do ordenança da secretaria, no meu período de férias, por forma a que fosse ele a continuar a levantar o correio da Companhia. Durante alguns dias passei por momentos de muito receio. 

O episódio relatado não foi um acto isolado. Dez dias depois desta triste e trágica ocorrência, uma outra se verificou no nosso aquartelamento, com o rebentamento de um RPJ no nosso refeitório. As desavenças que sistematicamente se verificavam entre os três movimentos de libertação de Angola, que numa primeira fase se revelava com a troca de tiros, normalmente com balas tracejantes, que propiciava uma visão que mais parecia de fogo de artificio e direcionados, quase sempre, aos aquartelamentos dos movimentos opositores, agravaram-se e as agressões passaram a contar com armamento pesado e muito mais letal.

A partir de determinada altura, quer MPLA, quer UNITA e FNLA terão decidido aumentar a agressividade entre eles, passando a utilizar RPJs, armas antitanque (Rockets lançados por foguete, ou seja: granadas, tipo bazucas, disparadas por foguete). Estas granadas foguete eram disparadas de forma completamente indiscriminada, sem alvo pré-definido.

Nesse dia tivemos um a rebentar no nosso refeitório, poucos minutos faltavam para as 18 horas. As mesas estavam postas para o nosso jantar, que devia acontecer pelas 18h30. O RPJ destruiu totalmente o refeitório.  Felizmente àquela hora não se encontrava ninguém naquele espaço. 

Em razão desta ocorrência, o nosso jantar só aconteceu por volta das 22h30, no quartel da polícia militar, que ficava mesmo ao lado das nossas instalações. A demora deveu-se à necessidade do nosso vagomestre, Albano Lobo, ter que contactar a Manutenção Militar, a entidade que fornecia os bens para a confeção da alimentação dos militares; informar o que tinha acontecido; ultrapassar a burocracia que nestes casos sempre se colocam e receber os materiais para a confeção do nosso jantar. Por outro lado, havia também a necessidade de se fazer a limpeza do refeitório da Policia Militar - lavagem de pratos, talheres e copos, que tinham sido utilizados pelos militares daquela Unidade, a fim de nós os podermos utilizar e havia, também, o tempo necessário para a confeção da nossa comida -. A solução que a Manutenção Militar colocou ao nosso vagomestre foi de uma ementa de batatas com atum. Era uma refeição de fácil confeção, mas necessitava que se descascassem as batatas e esperar pelo tempo de cozedura, a operação mais morosa, por isso, os militares da companhia foram convocados, em número significativo, para descascar batatas. O tempo de espera, parecendo muito (4 horas) acabou por não ser de mais, tendo em conta o que foi necessário fazer para providenciar os bens alimentares necessários e a sua confeção. O problema era mesmo a fome que se tinha apoderado de todos nós. Curiosamente, ainda hoje gosto deste prato e sabe-me como nessa ocasião.  

No dia seguinte, mais ou menos há mesma hora, novo RPJ rebentou nas nossas instalações, desta feita numa parede exterior da caserna. Fez uma fenda na parede, mas não impeditiva de poder ser utilizada.

Como em tudo na vida, não há nada que o tempo não resolva. Passado meia dúzia de dias voltei a fazer a vida normal, passando, inclusive, a dormir na minha cama e no meu quarto, ir ao SPM, à praia aos fins de semana e ao cinema, quase todos os dias.

A nossa estadia não teve apenas situações de tragédia, ou de maiores preocupações. Também tivemos situações muito agradáveis e divertidas.

Uma passagem divertida, por que passei na secretaria, foi quando um companheiro foi ao médico, por motivo de uma inflamação nos genitais e chega à secretaria, com aquela sua bem acentuada pronúncia do norte e diz: “Óh Ribeiro vê lá que o FdP do médico deve-me ter confundido com uma gaja, o cabrão, receitou-me esta pomada – mostrou-me a caixa – . O gajo nem viu qual era o problema e passou-me a receita. Na farmácia notei que os farmacêuticos cochichavam entre si e olhavam para mim com um certo sorriso a gozo, mas não entendi a razão. Agora, ao abrir o saco é que entendi. O gajo receitou-me o “vaginex”! Esta merda não tem como enganar, vaginex é para gajas !!! até tem aqui o dispositivo para as gajas meterem a pomada no pito. Ora, para que me serve isto”. Digo-lhe eu: mas já leste as instruções? “eu não e nem vou ler. Deixa ver! Li e percebi que a pomada tanto podia ser usada por mulheres como por homens, visto que o principal poder ativo era para o combate a inflamações fúngicas da pele incluindo pé de atleta, infeções fúngicas nas unhas, micoses ou coceira nos genitais, masculinos e femininos. O mal estava mesmo no nome que deram ao medicamento. Ele lá foi à sua vida, usou a pomada e dois ou três dias depois já não tinha qualquer inflamação. Mas o que eu me ri com este episódio.

Uma outra ocorrência que hoje acho muita piada, mas que na altura não achei piada nenhuma, foi quando o motorista Fulgêncio foi comigo ao SPM a Luanda e não ultrapassou os 20 kms hora. No dia anterior tinha-lhe chamado à atenção para o facto de ir com velocidade a mais e que isso podia acarretar-lhe ser penalizado pela policia militar e ou civil e eu, como chefe de viatura, também poder ser penalizado. Para contraria a minha chamada de atenção, fomos e regressamos a essa velocidade. Na altura não achei piada nenhuma, tendo-me chateado com ele, mas agora, que passaram muitos anos, não posso deixar de me rir dessa ocorrência. 

Participação em reuniões do MFA, no Comando Regional de Luanda.

Por sugestão do meu chefe, 1º sargento Pinto, fui indicado, juntamente com o meu camarada Guiberto Fernandes, para representar a companhia nas reuniões da Comissão de Coordenação do Programa do MFA, juntamente com mais dois graduados, de entre os quais, o nosso comandante de companhia. Nas várias reuniões em que participei, apenas por uma vez pude intervir. Tinha chegado, poucos dias antes, da metrópole, onde tinha gozado um período de férias, tendo assistido às primeiras eleições livres no país, para a Assembleia Constituinte e foi sobre este tema de falei na reunião. Não sei que importância teve para os presentes, cerca de uma centena de militares de todas as patentes, mas, pelas intervenções que todos nós ouvíamos, os temas eram diversificados, mas com conteúdos que se assemelhavam ao meu, em termos de importância. 


No dia 8 de junho de 1975 celebramos o 1º aniversário da nossa presença em Angola. Foi organizada uma festa de convívio entre todos os que compunham a companhia. Como todos nós nos contentávamos com pouco, o que tivemos nesse dia foi muito e bom, mas o que mais sobressaiu foi o companheirismo que todos manifestámos, desde o mais humilde ao mais rebelde, do soldado ao oficial, nesse dia, como em quase todos os outros.

Como já foi referido, os bens de primeira necessidade estavam a escassear em Luanda. Não havia quase nada nas prateleiras do hipermercado ou nas mercearias dos bairros, por isso, não me esqueço que muita vez tive que matar a fome com água. As refeições eram servidas muito cedo, pelas 18h30 e quase todos nós só nos deitávamos depois da meia noite. Nesse tempo não havia como matar a fome. Quando íamos ao cinema sempre comíamos um ou dois bolos e umas bejecas, mas quando tal não acontecia, e porque não tínhamos qualquer reserva de alimentação, tínhamos mesmo que beber água para enganar o estômago.

Como já foi referido, a partir de determinado período da nossa comissão de serviço, o nosso aquartelamento, junto da 4ª Rep,  foi invadido por algumas famílias, vindas dos mais variados pontos de Angola, que se refugiaram nas nossas instalações enquanto aguardavam embarque para Portugal. Na altura estava a decorrer uma ponte aérea entre Luanda e Portugal para fazer o repatriamento de todos os portugueses que quisessem regressar a Portugal, que, por melhor organizada que estivesse, não conseguia dar vazão às necessidades dos muitos milhares de portugueses que pretendiam abandonar o território.

A decisão que mais contribuiu para os portugueses abandonarem a província, ficou a dever-se às perseguições de que passaram a ser alvo por parte de grupos radicais devidamente organizados e que não só pilhavam o que podiam como chegavam a ter comportamentos demasiado agressivos. Alguns desses grupos foram formados por gente que já tinham sido empregados da mais inteira confiança, mas que, depois de manipulados, se tornaram pessoas com comportamentos impróprios, radicais e que de alguma forma racistas. A maioria eram trabalhadores do campo, com pouca cultura ou escolaridade, que acabavam por se juntar aos movimentos de libertação, mesmo que antes não se identificassem com as suas ideias políticas.

As lutas que os três movimentos travavam entre si, com o único propósito de obter vantagens sobre a descolonização, que já estava a decorrer e que teria o seu epílogo a 11 de novembro de 1975, não ajudava em nada o processo de Independência. As makas (lutas) entre eles eram diárias e cada vez mais violentas, o mais forte, neste caso o MPLA, tirava todas as vantagens.

Esta realidade conduziu a que uma grande maioria de portugueses achasse que não havia condições de continuar a exercer as suas várias atividades naquele território.

A demora no agendamento de viagem, deixava famílias inteiras numa completa revolta, a praguejar contra quem fez o 25 de abril de 74 e os políticos que lhes sucederam. Lamentavam vezes sem conta por a sua hora de repatriamento nunca mais chegar.

Estas pessoas, que tinham a sua vida completamente estabilizada nos mais variados pontos do território e contribuíam com os seus negócios para o desenvolvimento do país,  viram-se, de um momento para o outro, a viver em condições muito precárias, partilhando todas as instalações sanitárias com militares, a dormir em tendas de campanha e a fazerem os seus alimentos no meio de uma parada que estava parcialmente ocupada com caixotes com os pertences destas e outras pessoas e que aguardavam que fossem transportadas para o Porto de Luanda a fim de serem enviados para Portugal, por via marítima.

Foi um período que gerou um enorme constrangimento, não apenas para essas pessoas, a quem se passou a chamar de “retornados” mas também para os militares aquartelados. Havia senhoras de todas as idades, mas as mais jovens, não se coibiam de usar vestimenta muito reduzidas, por vezes provocante, no meio de todos nós e isso mexia com o nosso estado de espírito.  

A nossa comissão de serviço estava a caminhar para o fim. O mês de setembro seria o do regresso à metrópole.

Apesar da Companhia ter continuado a fazer patrulhamentos, juntamente com os três movimentos, a maior tarefa que estava em agenda era a de encaixotar os nossos pertences e algumas lembranças, que cada um de nós foi adquirindo ao longo do tempo de comissão, nos muitos bazares que Luanda tinha. Havia equipas a fazer esse trabalho, normalmente, os companheiros com mais jeito para a carpintaria. Foram duas ou três semanas a tratar deste assunto.

A viagem de regresso da C. Caç. 4246/73 iria ser feita no Navio Niassa e estava marcada para o dia 10 de setembro. Com exceção do Comandante da Companhia, do 1º sargento, do 1º Cabo Escriturário, (nós próprios) e de um motorista, todos os restantes 114 militares que estavam a terminar a comissão de serviço, regressaram no Paquete Niassa, juntamente com os pertences de cada um e da própria companhia. Foram 13 dias de viagem e, segundo nos relataram, foi uma viagem bem dolorosa para alguns, por terem enjoado durante os 13 dias.

Como já referimos, quatro militares ficaram em Luanda a fazer a liquidatária da companhia, o Comandante Christian Andersen, o 1º sargento Manuel Pinto, o escriturário José Ribeiro (eu próprio) e o Motorista Pina Gonçalves. Os quatro executamos o trabalho de liquidatária em tempo record. Estava previsto serem necessários 15 dias, mas nós, ao cabo de seis dias completamos o serviço. É verdade que por já estar toda a tropa em processo de liquidatária tudo foi significativamente facilitado, mas o nosso trabalho teve que ser feito sem que soubéssemos que a verificação de documentos e materiais eram menos rigorosas.

Durante os sete dias que ficamos em Luanda, depois da Companhia ter zarpado do porto de Luanda no Niassa, ficamos num quarto de um dos quartéis e, como já não tínhamos direito a comer nas instalações militares, foi-nos dado dinheiro para a alimentação do motorista Pina Gonçalves e para nós próprios. Durante esse período os restaurantes, os poucos que ainda resistiam em ficar abertos ao público, não tinham muita coisa para oferecer. Carne pouco havia e já não colocavam nas ementas e peixe ainda havia algum, mas, como naquele tempo peixe não era o alimento que mais apreciávamos o que mais comemos foram miúdos de frango com batata frita. Miúdos era o que mais havia.

A nossa viagem de regresso a Portugal foi marcada para as 7 da manhã do dia 16 de setembro de 1975, num avião 747 da TAP. Na noite do dia anterior ainda tínhamos algum dinheiro, angolano, que de nada nos servia na metrópole, por isso, depois do jantar, entramos numa barbearia, que vendia lotaria da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa e compramos umas quantas frações, com o objetivo de podermos rentabilizar o dinheiro que nos tinha sido distribuído. Não tivemos sorte, porque nada nos saiu.  Entretanto, deixamos ficar apenas o dinheiro necessário para o nosso pequeno almoço do dia do embarque, tomado já no aeroporto de Luanda.

Por volta das 16 horas, aterramos no aeroporto de Lisboa e, como tinha o meu pai e a minha namorada à minha espera, parti de imediato para o Fundão, onde estive até dia 23, data da chegada o Navio Niassa, com todos os meus camaradas.

Na Doca de Alcântara fundeou, a 23 de setembro de 1975, o Paquete Niassa, que tinha saído do Porto de Luanda a 10 de setembro do mesmo ano, que haveria de trazer de regresso a Portugal, após uma longa viagem de 13 dias, os 114 militares da Companhia de Caçadores 4246/73 (3 Oficiais, 16 Furriéis, 29 1ºs Cabos e 66 Soldados), que haviam terminado a comissão de serviço na Região Militar de Angola, onde permaneceram cerca de 16 meses e nós estivemos lá para os receber e ajudar a encaminhar para as suas localidades.   

Durante a comissão de serviço na Região Militar de Angola, foram evacuados para a metrópole, por motivo de doença: um Oficial, um 1º Cabo e dois Soldados.

Recordemos que:

No dia 8 de junho de 1974, cerca da 01h00 da manhã, embarcaram num Boeing 707 dos Transportes Aéreos Militares, os 122 militares que compunham a Companhia de Caçadores 4246/73, sob o Comando do Capitão Miliciano Christian Bastos Andersen.  Para melhor memória dos nossos descendentes, aqui ficam os nomes de todos:

  5 oficiais:

Capitão Mil.

Atirador  

Christian Bastos Andersen

Alferes Mil.

Op. Especiais

Emanuel Jesus Fonseca Gravato

Alferes Mil.

Atirador

Alberto Fernando C. L. Fernandes

Alferes Mil.

Atirador

António Pereira Martins

Alferes Mil.

Atirador

Manuel Lutas Craveiro de Sousa

17 sargentos:


1º Sargento

TMS Infª

Manuel Pinto


Furriel Mil.

Enfermeiro

Luís Manuel Moreira Neves Viegas

Furriel Mil.

Vagomestre

Albano Manuel Ferreira Rebelo Lobo

Furriel Mil.

TMS Infª

Carlos Manuel Rego Barbosa

Furriel Mil.

Mecânico Auto

José Luís de Barros Campos

Furriel Mil.

Op. Especiais

Fernando José Relvinhas Salgueiro

Furriel Mil.

Artilh. Pesada

Vasco Alfaia Gorgulho

Furriel Mil.

Atirador

António Manuel Conceição Batista

Furriel Mil.

Atirador

Armando Fernandes Gomes Amorim

Furriel Mil.

Atirador

Carlos Alberto Matos Fernandes

Furriel Mil.

Atirador

João António Guterres Pereira

Furriel Mil.

Atirador

João Evangelista Afonso Magalhães Vaz

Furriel Mil.

Atirador

João Manuel Ribeiro Gonçalves

Furriel Mil.

Atirador

José Luís Frazão Peneda

Furriel Mil.

Atirador

Mário Luís Gonçalves Barroso

Furriel Mil.

Atirador

Norberto Chaves Freitas

Furriel Mil.

Atirador

Rogério Manuel Mateus Pires

31 1ºs cabo:


1ºcabo Espec

Escriturário

José Joaquim Santos Ribeiro

1ºcabo Espec

Operador Cripto

Arnaldo Augusto Martinho Guimarães

1ºcabo Espec

Operador Cripto

Jorge Fernando Rodrigues da Silva

1ºcabo

Aux. Enfermeiro

Domingos Gil Pereira

1ºcabo

Aux. Enfermeiro

José Fernando Pereira Machado

1ºcabo

Aux. Enfermeiro

Jorge dos Santos Ferreira

1ºcabo

Aux. Enfermeiro

Abílio dos Santos Oliveira

1ºcabo

Mec. Auto Lig.

Lino Rosa da Fonseca

1ºcabo

M.Auto Rodas

Júlio Eusébio Carvalhão

1ºcabo

Condutor Auto

Vítor Manuel da Silva Ribeiro

1ºcabo

Condutor Auto

Manuel Alberto Patrício Fajardo

1ºcabo

Radiotelegrafista

Guiberto José Pacheco Fernandes

1ºcabo

Radiotelegrafista

António Moreira Babo

1ºcabo

Cozinheiro

António da Costa Campos

1ºcabo

Padeiro

José Jesus Silva

1ºcabo

Op. Morteiro

Vítor Manuel Peres Lourenço

1ºcabo

Op. Morteiro

Manuel Carlos Leite Dinis

1ºcabo

Op. Metralhad

José Mendes Pereiro

1ºcabo

Op. Metralhad

Augusto Coelho da Fonseca

1ºcabo

Corneteiro

Luís Manuel Lemos

1ºcabo

Atirador

Alípio Ervedosa de Moura

1ºcabo

Atirador

António Augusto Ribeiro Fernandes

1ºcabo

Atirador

Joaquim Moreira da Silva

1ºcabo

Atirador

José Soeiro Teixeira

1ºcabo

Atirador

José Maria da Silva

1ºcabo

Atirador

Francisco Pinto

1ºcabo

Atirador

Constantino da Silva Pacheco

1ºcabo

Atirador

Joaquim da Silva Sá

1ºcabo

Atirador

Nuno Antunes Pereira

1ºcabo

Atirador

Eduardo Adriano Félix

1ºcabo

Atirador

Evaristo Maria Faustino

69 soldados:


Soldado

TMS Infantaria

Adriano Jesus Marques

Soldado

TMS Infantaria

Luís Manuel Rodrigues dos Santos

Soldado

TMS Infantaria

Vasco de Jesus Gomes da Silva

Soldado

TMS Infantaria

Manuel José Monteiro Parente

Soldado

Radiotelegrafista

Rui Jorge da Silva Almeida

Soldado

Radiotelegrafista

Analídio Belchior Costa

Soldado

Mecânico Auto

Fernando Carvalho Leitão

Soldado

Mecânico Auto

Manuel Ricardo da Silva

Soldado

Condutor Auto

António Camilo Leitão

Soldado

Condutor Auto

Fernando da Conceição Dias

Soldado

Condutor Auto

Serafim Freitas Rocha

Soldado

Condutor Auto

Fernando Oliveira Santo

Soldado

Condutor Auto

João Silvino Martins Lopes

Soldado

Condutor Auto

Francisco António Ferreira

Soldado

Condutor Auto

Florentino de Almeida

Soldado

Condutor Auto

António Manuel Pina Gonçalves

Soldado

Condutor Auto

António Gato Prates

Soldado

Condutor Auto

Aníbal Sousa da Silva

Soldado

Condutor Auto

Fulgêncio Soares Coelho

Soldado

Condutor Auto

Armindo Francisco Vieira

Soldado

Apont. Morteiro

Nelson Marques Lourenço

Soldado

Cozinheiro

José Joaquim Rodrigues Martins

Soldado

Aux. Cozinha

Manuel Joaquim Alves Pereira

Soldado

Aux. Cozinha

Coriolano Santos Gomes

Soldado

Corneteiro

Manuel António Pires

Soldado

Corneteiro

Manuel de Jesus Lopes

Soldado

Corneteiro

Fernando Augusto Reis Monteiro

Soldado

Corneteiro

José Miguel Pascoa Vieira

Soldado

Atirador

João Jerónimo dos Santos

Soldado

Atirador

José Luís Cerdeira Marques

Soldado

Atirador

David Alves Cariano

Soldado

Atirador

Horácio Eladestildes Godinho Carlos

Soldado

Atirador

Américo da Silva Salvador

Soldado

Atirador

António Eduardo Araújo Cândido

Soldado

Atirador

Albino da Silva Simões

Soldado

Atirador

António Simão

Soldado

Atirador

António Francisco Relvas

Soldado

Atirador

Sérgio Francisco Granjeia Loura

Soldado

Atirador

Manuel Francisco Gomes

Soldado

Atirador

José Félix Alberto

Soldado

Atirador

Joaquim Esteves Duarte

Soldado

Atirador

António Armando dos Santos Ferreira

Soldado

Atirador

Joaquim José Pereira dos Santos

Soldado

Atirador

João Simões Lourenço

Soldado

Atirador

Gabriel Ricardo Inácio

Soldado

Atirador

Carlos Alberto Marrafas Freire

Soldado

Atirador

João dos Santos Garcia Branco

Soldado

Atirador

João Laia Fernandes

Soldado

Atirador

Abel da Conceição Agostinho

Soldado

Atirador

Zeferino dos Santos Costa

Soldado

Atirador

Eduardo Augusto da Silva Ribeiro

Soldado

Atirador

Diamantino dos Santos Pina

Soldado

Atirador

Ilídio Carreira Gomes

Soldado

Atirador

António Francisco Luís

Soldado

Atirador

Manuel Rodrigues Horta

Soldado

Atirador

José Henriques Navalhas Fernandes

Soldado

Atirador

Manuel dos Santos Galante

Soldado

Atirador

Fernando Jorge Brinde Marques

Soldado

Atirador

Carlos Alberto F. A. Carreira

Soldado

Atirador

José António das Dores Bateira

Soldado

Atirador

Eduardo Sabino

Soldado

Atirador

José Mateus Jesus

Soldado

Atirador

Luís Filipe Maria Garcia

Soldado

Atirador

José Simões

Soldado

Atirador

Domingos Ventura Rosa dos Santos

Soldado

Atirador

José Costa dos Santos

Soldado

Atirador

António Fernando Sobral Tavares

Soldado

Atirador

Carlos Manuel da Silva Remigio

Soldado

Atirador

Carlos Silva Coelho Bessa

 O nosso percurso de 27 meses como militar,  iniciado a 07 de agosto de 1973 e terminado a 18 de outubro de 1975, foram vivenciados nos seguintes locais:

07 de agosto de 1973, incorporado, como recruta no  BC 6- Batalhão de Caçadores nº. 6 em Castelo Branco;

09 de outubro de 1973, transferido para o RAL 4 - Regimento de Artilharia Ligeira nº. 4 em Leiria, para fazer a especialidade de escriturário.

16 de dezembro de 1973, colocado na CCS - Companhia de Comando e Serviços do Regimento de Infantaria nº. 2 em Abrantes;

04 de janeiro de 1974, transferido para o DRM - Distrito de Recrutamento e Mobilização nº. 2 em Abrantes:

05 de fevereiro, regresso ao RI 2 - Regimento de Infantaria nº. 2 de Abrantes para ser incorporado na Companhia de Caçadores 4246/73

06 de março de 1974, a C. Caç. 4246/73 foi transferida para Santa Margarida, para ali realizar o IAO - Instrução de Aperfeiçoamento Operacional.

08 de junho de 1974 - Luanda - Campo militar do Grafanil

13 junho de 1974 - Gago Coutinho - Missão no aquartelamento da Colina do Rio Nengo, de proteção à construtora TECNIL;

06 de setembro de 1974, regresso a Luanda, instalados no ATmA - Agrupamento de Transmissões de Angola, para os operacionais realizarem uma missão de patrulhamento em zona problemáticas de Luanda, inseridos no COPLAD - Comando Operacional de Luanda;

15 de fevereiro de 1975, nova mudança, desta feita para as antigas instalações da 4ª REP, na estrada de Catete, mantendo, a companhia a missão junto do COPLAD.

16 de setembro de 1975, regresso a Portugal.

18 de outubro de 1975, passagem à disponibilidade e Reserva. 

 

Estudo sobre todas as unidades de Infantaria que estiveram envolvidas na guerra do ultramar português, no período de 1961 a 1974.