O relato que se segue é o testemunho do meu comandante de Companhia, a Caçadores 4246/73, Christian Bastos Andersen, uma das companhias que participou no 25 de Abril de 1974. Neste testemunho ficamos a conhecer as motivações que estiveram na origem da participação no 25 de Abril, o que se passou no antes e no depois ao dia da libertação do nosso país.
ANTECEDENTES: O que
terá levado um jovem de 28 anos, de família bem instalada na vida, casado e já
com 3 filhos, que nunca teve grandes iniciativas revolucionárias (nem
acreditava nelas!) a entrar numa revolução?
Muitas vezes me interroguei e reflecti sobre esta questão. O que é facto é que entrei de alma e coração nessa revolução, sem hesitações, embora ciente de que eu, a minha família e amigos iriamos perder privilégios, que seria uma revolução sangrenta (previam-se pelo menos uma semana de combates!) e que o resultado ainda era incerto, tanto mais que sabíamos que a Pide tinha conhecimento do golpe.
Nós
somos, em cada momento, a soma daquilo que aprendemos e vivemos até essa
altura. E atribuo muita importância há alguns factores específicos:
A
minha ascendência dinamarquesa. De facto o meu pai foi dinamarquês até muito
tarde, só se tendo naturalizado Português já eu era maior. Eu podia até ter
escolhido a nacionalidade dinamarquesa, o que não fiz (alguns dos meus
familiares optaram por se tornarem dinamarqueses) mesmo sabendo que com essa
opção teria que fazer o serviço militar, o que acarretaria em média 3 anos sem
trabalhar na minha profissão e provável ida ao Ultramar com riscos de ter de
combater. Mas de facto, nunca tendo ido à Dinamarca nem sabendo falar
dinamarquês e gostando muito de Portugal – já, nessa altura não tinha dúvidas
de que era A MINHA TERRA! – não me fazia sentido deixar de ser português, só
para fugir às chatices e riscos de uma guerra colonial, mesmo não concordando
com ela. Esta minha escolha também teve muita importância em opções futuras: já
que tinha escolhido ser português, então não teria lógica que não tentasse ser
sempre um bom português!
Por
outro lado o meu pai transmitiu-me uma série de valores de honradez, respeito
aos outros, etc… que me conseguiu passar. Ele tinha sobretudo uma crença, que
eu herdei, que a nossa passagem pelo Mundo não faria sentido nenhum se não o
deixássemos melhor do que quando cá chegámos. E que se queríamos que o Mundo se
tornasse melhor eramos nós e não os “outros” que tínhamos que lutar por isso.
Alguns destes valores tenho muita dificuldade em vislumbrar nos meus
conterrâneos: para muitos portugueses, quando as coisas não estão bem a culpa
será sempre de terceiros (o Estado, o patrão, a Lei, etc…) e eles não podiam
nem podem fazer nada para ajudar a resolver os seus problemas. É o nosso fado!
Outro
antecedente que teve muita importância em tudo isto: a minha educação escolar
ter sido determinantemente conseguida pelos Jesuítas: dos 8 aos 17 anos estive,
em regime de semi-internato (entrava às 7h e saía às 19h) no colégio S. João de
Brito. Aí tive franco contacto com a pobreza dos bairros da lata, pois eramos
convidados a visitar e ajudar as pessoas que viviam no Bairro da Musgueira, o
maior bairro da lata dos arredores de Lisboa. Portanto constatei brutalmente
que o mundo simpático e familiar onde eu vivia, e que o Regime nos vendia como
sendo semelhante ao da maior parte dos portugueses, era uma enorme e terrível
mentira! Na Musgueira vi uma enorme miséria material e humana: a Polícia não ia
lá, não havia qualquer tipo de saúde, ensino, recolha de lixo ou qualquer outro
tipo de apoio, com excepção de uma missão católica e das conferências
vicentinas. As “casas” eram um espaço com lama, sem água, nem electricidade,
nem esgotos onde as pessoas se amontoavam na maior promiscuidade tornando os
termos pedofilia, violência, prostituição aos 10 anos, roubo, etc… meros
adjectivos do quotidiano da maior parte daquela gente, sujeita à exploração
mais ignóbil por alguns lideres locais, autêntica rede mafiosa de que ninguém
conseguia fugir. Era a face negra do Regime que urgia mudar.
Os
Jesuítas tiveram também uma influência muito importante na minha educação, pois
tendo um ensino excelente, tanto técnico como humano e religioso, ajudaram-me a
ser um tipo com curiosidade de conhecer a verdade (tirei alguns cursos
superiores) e um crente profundo. Acreditar que a felicidade se alcança quando
nós amamos o próximo ajudou-me muito na opção final pela revolução: por muito
difícil que seja de acreditar também foi uma decisão de Fé e de Amor! Só tenho
pena é que tantas vezes eu não consiga, por preguiça ou egoísmo, ser coerente
com a minha Fé!
Quando
entrei na Faculdade vivia-se em pleno as lutas académicas da época marcelista.
Também andei em algumas dessas manif, mas sobretudo porque era divertido andar
a chatear os polícias e depois fugir deles. No entanto nunca consegui levar
muito a sério os meus colegas ”revolucionários” porque só consegui ver neles
uns burgueses pseudo-progressistas que, embora
vivendo à custa de um sistema, pretendiam impor-lhe teorias importadas, que não percebiam na
totalidade e muito menos nas suas consequências. Apenas ansiavam ter um grande
protagonismo e, como por várias vezes constatei, o seu grande amor ao Povo, tão
violentamente propagado, limitava-se ao convívio com o seu pequeno grupo.
Casei-me
no dia em que fiz 21 anos, tendo ido logo trabalhar para a Alemanha, em
condições um pouco melhores do que as dos nossos emigrantes, mas mesmo assim de
algum sofrimento pela saudade de todos os que cá ficaram e do Sol que nunca vi
enquanto lá estivemos. Serviu no entanto para perceber a riqueza que uma
sociedade muito organizada pode gerar, mesmo sem trabalharem muito, como era o
caso do sítio onde trabalhámos. Também serviu para aumentar o meu amor a
Portugal e consolidar o meu casamento. Apenas durou 4 meses este período na
Alemanha, tendo regressado a Portugal para continuar o curso. Fomos vivendo de
apoios familiares e de biscates vários, que não davam tempo para vivenciar
qualquer vida académica, revolucionária ou não.
Acabei
o curso e comecei a trabalhar, pois só fui chamado para a tropa após menos de
um ano depois de ter acabado o curso, por razões que nunca cheguei a entender.
Profissionalmente tudo correu muito bem e cheguei a ganhar bem. Entretanto tive
três filhos.
Vivia-se
em Lisboa um clima de grande e quase livre discussão política, apesar do
período marcelista ter sido o período da nossa história recente com o maior
crescimento da economia. Foi um período importante porque cimentei muitos
conceitos políticos e económicos.
Quando
tudo estava a correr bem fui chamado para Mafra! Foi um enorme balde de água
fria, pois já quase me tinha esquecido dessa possibilidade! E uma revolta
também: estava já com três filhos e passava de uma bom nível de vida para não
ganhar nada em Mafra.
Ao
fim de 3 meses em Mafra (1º ciclo de cadete), soubemos todos as nossas futuras especialidades
para onde iriamos. Fui para Comandante de Companhia! Até chorei: em vez de 2 ou
3 anos num quartel da Metrópole, ou em qualquer cidade do Ultramar como
alferes, situação que provavelmente me permitiria continuar também a trabalhar
em part-time, iria ter garantidamente guerra no mato e uma comissão de quase 5
anos. É evidente que aqui a minha revolta se tornou mais objectiva, mais consistente.
No nosso pelotão dos futuros CC tentámos quase todos chumbar (iríamos para Cabo
Miliciano), pois assim talvez pudéssemos estar menos tempo na tropa:
respondíamos mal nos testes, falhávamos os alvos, gozávamos os oficiais que nos
comandavam etc…, enfim fazíamos tudo ao contrário, caindo às vezes em situações
engraçadíssimas. Eu até consegui que a minha classificação fosse apenas de 5
valores em 20, mas o Sistema resolveu facilmente o problema: deu a todos mais 6
valores tornando o nosso pelotão aquele que teve a média mais alta de Mafra!
Durante
2º ciclo em Mafra no pelotão dos futuros Comandantes de Companhia, quase todos
fervilhavam de revolta, e eu mais ainda porque tinha uma família para sustentar,
tendo a minha mulher começado a trabalhar para minorar esse problema. Aí
formámos um pequeno grupo de colegas (Miguel Amado, Santos Jorge e Luís Pessoa
) cujo motivo de conversa era essencialmente o estado da nação e o nosso
descontentamento. Foi este grupo a génese da minha entrada para o Movimento das
Forças Armadas.
Depois
deste 2ª ciclo em Mafra, fomos todos para uma zona de combate durante 4 meses:
um estágio! A mim calhou-me uma zona
perigosa da Guiné: o Saltinho, numa companhia que já tinha 20 mortos. Fui
confrontado com guerra a sério (estive algumas vezes debaixo de fogo!) e com as
dramáticas consequências dum colonialismo cego, ao mesmo tempo que ganhei algum
sentido de responsabilidade em relação à população colonizada: além de ter comandado
um grupo de combate de ex-comandos nativos, tive que dar protecção a uma
mulher, a primeira mulher do Cherne Rasshid (o emir islâmico mais respeitado da
Guiné) a Mámá Fatmat! Tive muitas oportunidades de conversar com ela e nestas
conversas ela, embora iletrada e sem nunca ter saído daquela tabanca, mostrou
uma sabedoria de vida que me espantou e admirei profundamente: deixei de ser
racista que (como todos os portugueses) julgava nunca ter sido. Também trouxe
da Guiné um conhecimento importante: embora contra toda a situação do regime e
do seu colonialismo iria ter uma Companhia à minha responsabilidade (180
homens), que teria que preparar o melhor possível para a guerra, para bem da
sua salvaguarda.
De
volta à Metrópole (ou ao puto como lá se dizia!) fiz um curso para Capitão em
Mafra e depois andei uns meses largos a não fazer quase nada por alguns
quartéis.
Até
que fui chamado a comandar uma Companhia de instrução no quartel de Abrantes,
da qual sairiam os soldados da minha futura companhia! Foi um primeiro contacto
com um problema grave: a maioria destes soldados era, com o seu trabalho, o
sustento de suas casas numa pobre economia agrícola e, enquanto estivessem na tropa
ganhariam muito pouco. E sendo eles maioritariamente da Beira Alta e de
Trás-os-Montes não tinham a menor hipótese, nem em termos de tempo, nem em
termos de dinheiro, de ir a casa passar os fins-de-semana! Acabei por
experimentar implementar um esquema de “baldas” que funcionava assim: dividi a
companhia em três partes iguais e cada um desses três terços iam a casa, rotativamente
de três em três semanas, passar um fim-de-semana de 5/6 dias, sendo a instrução
muito mais intensa para compensar. Nunca percebi como é que tudo correu tão bem
e eu nunca fui preso. E não contava com o apoio ou conivência de ninguém dentro
do quartel para além, obviamente, de todos os graduados e soldados da minha
companhia.
Quando
acabou a 1ª fase da instrução, juntaram-se os especialistas e formou-se a minha
companhia – a companhia independente C. Caç. 4246 – a quem ainda demos
instrução em Abrantes e depois fomos para S. Margarida fazer o chamado IPO, que
era a instrução operacional definitiva, de onde saímos para o 25 de Abril.
A REVOLUÇÃO:
Este
período em Sta. Margarida foi riquíssimo em convívio e troca de impressões
entre todos os soldados, mas sobretudo com os graduados, sobre a política em
Portugal. Naturalmente como ali ninguém estava de boa vontade, depois do medo e
hesitação inicial, a comunicação correu fácil e solta. Entretanto começaram
reuniões com outros militares, em que de St. Margarida ia o Luís Pessoa e eu
(mais ele que eu, que já tinha 3 filhos e preferia ir a casa), que tomaram um
sentido crescentemente conspirativo até chegar ao ponto de ser aprovado a
vontade de fazer a Revolução. Tínhamo-nos comprometido! Éramos revolucionários!
Esta consciência de que nos tínhamos comprometido numa potencial revolução foi
acontecendo ao longo de Março/Abril, mas a confirmação de que iríamos fazer um
golpe de Estado foi apenas pelo dia 15/18 de Abril. Curiosamente, o golpe
falhado das Caldas em 16 de Março em vez de desanimar até entusiasmou, pois foi
sentido como um golpe muito sectorial (spinolistas apenas) e por isso muito
pouco abrangente, tendo sido por isso que falhou, mas serviu para mostrar que o
Regime estava fraco! Se muitas vezes senti medo sobretudo pela minha família,
também é verdade que se vivia um clima de algum inebriamento e, já perto da
data, soube que um dos organizadores era o meu cunhado, o major Sanches Osório,
o que muito me reconfortou, pois conhecia-o bem e sabia-o pessoa de bem.
Naturalmente
que esta última semana antes do 25 de Abril foi de preparação do golpe e de nós
próprios. Embora nunca tenha tido consciência de ter manipulado os meus
soldados, contava desafia-los para vir comigo, esperando que alguns deles assim
o quisessem fazer e que os restantes se mantivessem calados e portanto é
natural que também nesta semana tivesse intensificado as discussões politicas
na Companhia.
Entretanto
o Pessoa foi a uma reunião onde lhe confirmaram que a data mais provável seria
o dia 25 de Abril, a pré-confirmar pela emissão de uma canção popular ”E depois
do adeus” cantada pelo Paulo de Carvalho nos Emissores Associados de Lisboa
pelas 23h do dia 24 de Abril. Se essa canção fosse para o ar deveríamos
preparar tudo para começar a Revolução, cujo início seria marcado pela agora famosíssima
canção do Zeca Afonso “Grândola, vila morena”. Ainda hoje fico emocionado
quando a ouço! Era uma canção proibida pela Censura e que sendo emitida pela
Rádio Renascença pouco depois da meia noite confirmaria que a Revolução não
tinha sido abortada e portanto arrancaríamos. A nossa ordem de marcha foi
ocupar a ponte de Vila Franca, para impedir o Regime de a tomar e ao mesmo
tempo impedir os tanques de Santarém de chegar a Lisboa, caso eles não
passassem para o nosso lado. A companhia do Pessoa (ou os soldados que ele
conseguisse convencer) iria tomar os emissores do Porto Alto, centro de
retransmissão, que estando nas nossa mãos impediriam o Regime de falar pela
Rádio para Portugal inteiro. Confesso que senti uma pontinha de inveja com a
missão aparentemente tão fácil que lhe tinha cabido comparada com a nossa:
enfrentar os tanques?!Também fiquei a saber o nosso código rádio para falar com
o nosso Comando na Pontinha: Charlie 18. Fomos também avisados que as forças da
GNR não estavam do nosso lado, pressupondo-se que permaneceriam fiéis ao Regime
e que poderiam opor-se à nossa marcha para Lisboa.
Durante
todo o dia 24 os nervos foram imensos! Aproveitei para me informar como poderia
roubar as viaturas, rádios, munições e armas, pois todos estes equipamentos,
depois de cada dia de instrução eram entregues nos respectivos paióis e armazéns.
Nada ficava na nossa posse: consegui sonegar uma pistola- era todo o armamento
que eu tinha para fazer uma Revolução! Verifiquei com enorme apreensão que
embora existissem bazucas em Sta. Margarida não havia munições para elas. E as bazucas
eram as únicas armas que eu conhecia capazes de parar um tanque! Se de facto
tivéssemos que abrir fogo contra os tanques, melhor seria que o fizéssemos com
fisgas, pois assim talvez os tanques se rissem de nós e não dizimassem o meu
pessoal. O Pessoa disse-me (talvez só para me descansar) que nos iríamos
encontrar na Ponte da Golegã com uma coluna, que viria da Engenharia de Tancos
e que levaria muita munição para nós.
Quando
ouvi o “E depois do adeus” chamei os graduados (que já dormiam) para lhes dizer
que iríamos ter uma instrução nocturna pouco depois da meia-noite e que
portanto avisassem os seus soldados para estarem prontos pela meia-noite junto
a uma caserna. Colei o meu ouvido à telefonia com crescente nervosismo, até que
pela meia-noite e vinte lá apareceu o Grândola! Fiquei gelado: era agora, já
não haveria retorno possível! Mas, como sempre acontece em momentos de acção,
passou-me o nervosismo: sabia o que tinha que fazer!
Dirigi-me
ao local onde os soldados e graduados me esperavam e falei-lhes explicando-lhes
que para mim tinha chegado a hora de me levantar contra este Regime e que iria
para Lisboa entrar numa Revolução! Quem quereria juntar-se a mim, avisando que
poderia ser uma semana complicada? Esperava que pelo menos uma dúzia se me
juntassem, mas aconteceu uma coisa inacreditável: todos deram um passo em
frente! A emoção tomou conta de mim, mas ao mesmo tempo um medo enorme: para
onde estava eu a arrastar todos estes jovens? Graças a Deus estava escuro e
eles não puderam ver bem a minha cara! O único que não foi connosco foi o 1º
Sargento Pinto, porque achei que sendo ele profissional eu não tinha o direito
de lhe dar cabo da carreira, caso a Revolução não vingasse. Tenho a impressão
que nunca me perdoou eu não o ter chamado.
Não
havia tempo para grandes dúvidas: fui ao parque das viaturas e disse ao soldado
que vinha levantar viaturas para uma instrução nocturna. Ele não acreditou,
porque não tinha ordem nenhuma nesse sentido: onde estava a minha autorização?
Mostrei-lhe a minha pistola e ele considerou que seria uma autorização
suficiente! As viaturas capazes de sair eram muito poucas e por isso lá fomos
120 pessoas penduradas em meia dúzia de viaturas arrombar os paióis e armazéns
de onde tirámos as G3, granadas, rádios, rações de combate, etc…
Lá
arrancámos para Lisboa, já seriam uma duas e meia da manhã, sem grandes
incidentes, até à Ponte da Golegã, onde nos encontraríamos com a Grande Força
da Engenharia cheia de oficiais superiores, soldados a valer e sobretudo:
muitas armas e munições antitanque! Todos estes sonhos nos deram algum
descanso! E de facto começámos a vislumbrar uma longa procissão de faróis ao
longo da ponte, talvez umas 40 viaturas: eram eles! Estávamos safos!
Quando
pararam ao nosso lado eu não queria acreditar: as Berliets vinham quase vazias
de pessoal (ao todo seriam talvez uns 20) e quanto às tais munições antitanque,
nada! Apenas tinham trazido bastantes cunhetes de munição para G3, da qual já
tínhamos bastante.
Não
havia tempo para lamentações e eu não queria que os soldados sentissem a fraca
organização em que estávamos envolvidos. Lá seguimos para Vila Franca. Pelo
caminho os GNR não nos hostilizaram, pelo contrário, os poucos que vimos
ajudaram a nossa marcha regulando o pouco trânsito que havia àquela hora.
Chegámos
à portagem da Ponte de Vila Franca ao alvorecer.
O
dispositivo foi montado, tendo em conta que não tinhas mais para opor aos
tanques do G3. Entretanto achei melhor acabar com as portagens, para evitar
algum eventual engarrafamento. Detectámos um oficial superior da aviação dentro
de um VW: era o comandante da base do Montijo (salvo erro…) e que decidi que
ficasse ali “preso”, sobretudo incomunicável, o que suportou com razoável
bonomia: julgo que já teria sabido de qualquer coisa, pois não ficou nada preocupado.
Pelas
10h fui contactado, via rádio, que o movimento praticamente não estava a ter
oposição e que algumas unidades mais já tinham passado para o nosso lado,
incluindo os tanques de Santarém. Uf! Que alívio!
Devo
dizer que embora a portagem da ponte de VFX não fosse zona própria para piões,
começaram a aparecer algumas dezenas de civis, que queriam saber o que
estávamos ali a fazer, e que depois de se lhes ter sido dito que era uma
revolução para derrubar o regime, o seu apoio foi bastante generalizado e
inequívoco, embora ainda com algum temor.
Pelas
11h recebemos ordem para irmos ocupar o Aeroporto, pois a EPI de Mafra não
teria efectivos capazes de o fazer em condições. Assim fizemos, juntámos o
pessoal todo e arrancámos em direcção a Lisboa.
À
entrada em Lisboa, junto ao actual Ralis (naquela altura a auto-estrada não
estava tão rebaixada, nem existiam aqueles viadutos e o Ralis dava directamente
para o fim da auto-estrada) estava montada uma barricada para nos impedir de
passar! Não fiquei muito preocupado apesar de ser um obstáculo inesperado (o
Comando tinha-nos dito que não sabia de nenhum impedimento na marcha para
Lisboa), o que é facto é que a forma como a barragem estava montada era
completamente inútil para impedir uma coluna com a dimensão da nossa: 20 a 30
militares armados de G3 com duas viaturas atravessadas nas duas faixas, as
quais nem sequer tapavam completamente a nossa passagem. Era um proforma de
quem estava a cumprir alguma ordem, que não lhe apetecia nada seguir: era uma
barricada para fingir que se tinha feito alguma coisa. Os meus soldados que iam
comigo na viatura mostraram as armas com prontidão, enquanto que os militares
da barragem nem nos apontaram as suas armas.
Dirigiu-se-me
um aspirante que, suponho, estaria a comandar aquele grupo de militares e
estabeleceu-se o seguinte diálogo:
Tenho
ordens para não deixar passar – disse ele
E
eu tenho ordens para passar! – disse eu
Não
serei eu que o vou impedir – disse o aspirante em voz um pouco mais baixa.
No
entanto, embora tudo aquilo me parecesse um faz-de-conta, achei que haveria
mais do que aquela força e não queria arriscar arrancar e, de dentro do quartel
e bem melhor protegidos do que aqueles militares em pé ali na rua, alguém
começasse a fazer fogo. Dirigi-me ao aspirante:
Recebes
ordens de quem?
Do
meu Coronel.
E
onde está ele?
Está
ali junto ao muro do quartel do lado de dentro.
Então
vamos falar com ele! – disse eu.
Lá
fomos os dois a pé, com 5 ou 6 dos meus soldados, até ao muro e o tal
comandante estava dentro duma guarita. Só lhe via os olhos! Tive a sensação de
estar a falar com alguém entalado dentro de um marco do correio! Com ele tive
esta conversa:
Então
meu coronel, o que se passa?
Tenho
ordens para não deixar ninguém passar para Lisboa e portanto não pode passar!
E
eu tenho ordens para passar e vou passar!
Mas
tem ordens de quem?
Do
Comando da Revolução!
Ele
calou-se um pouco e disse qualquer coisa do tipo: não recebi instruções para
este caso.
Eu
disse-lhe: meu Coronel, vou passar a bem ou a mal e, se preza os seus soldados
que estão naquela barragem, é melhor dizer-lhes para se afastarem, e voltei-lhe
as costas, tentando aparentar uma calma que estava longe de sentir.
O
aspirante que voltou comigo estava todo entusiasmado. Disse-lhe só para afastar
um pouco as suas viaturas para nós podermos passar, o que fez prontamente, e
nós seguimos para o Aeroporto. Este episódio, nessa mesma altura, fez-me sentir
que o Regime estava podre e que ninguém se iria opor decididamente à nossa
revolução. Pelo que fiquei bem mais descansado!
Chegados
ao Aeroporto, já lá estavam alguns militares (uma dúzia?), que ficaram
visivelmente muito aliviados quando viram chegar a minha Companhia. De facto
eramos uma força considerável – bem mais de 100 militares – o que permitiria
montar um perímetro de segurança às pistas, torre de controlo e edifícios. A
pequena força que lá encontrámos, sendo poucos, tinha armamento bem melhor que
o nosso: entre outros, dois canhões sem recuo e com munições!
Pouco
tempo depois o oficial (da EPI?) que estava na torre de controlo veio avisar-me
que se estavam a aproximar 2 aviões vindos de Tancos, provavelmente cheios de
paraquedistas, os quais ainda não se sabia de que lado estariam. Fiquei muito
preocupado: se os aviões estivessem cheios, teriam o dobro dos nossos efectivos
e com um treino operacional muito superior ao nosso. Se os deixasse aterrar
estávamos vencidos, com um número de mortos certamente elevado! Só vi uma
hipótese: colocar os canhões no alinhamento da pista e fazer explodir os aviões
ainda em fase de aterragem. Enquanto estava discutindo esta hipótese com o tal
oficial, chegou a notícia, logo depois confirmada pelo Comando, que eles
estavam do nosso lado. Graças a Deus! Lá aterraram e apareceram umas viaturas
que os levaram. Quando o seu Comandante me cumprimentou eu até corei só de
lembrar o que lhe estava a preparar, do que julgo que ele nunca teve
conhecimento.
Permanecemos
no Aeroporto, julgo eu, todo o resto do dia 25, como o 26 e até o 27. Foi aqui
que fomos tendo notícias do desenrolar dos acontecimentos: prisão do Américo
Tomaz e rendição do Marcelo Caetano ao Spínola. O aparecimento do General
Spínola neste episódio foi-me muito surpreendente, pois sabia que não só o MFA
não pretendia ser liderado por ele, como ele não se tinha mostrado muito
interessado. Só mais tarde é que vim a saber da história da rendição do Marcelo
no quartel do Carmo.
Durante
estes dias em que estivemos no Aeroporto muita gente veio festejar, gritar pela
Revolução. Enfim a Revolução estava claramente ganha, o Regime tinha caído e a
alegria tinha tomado conta dos portugueses. Posso dizer que julgo que nunca
comemos tão bem na tropa como enquanto aqui estivemos, tantos eram os presentes
e apoios que recebemos. Lembro-me que os festejos terão tomado uma dimensão
talvez exagerada, que temi perder o controlo da Companhia. Mas enfim nesta fase
a prontidão militar já não seria tão prioritária e os meus rapazes, depois de
tanta tensão pelo que passaram, bem mereciam alguma recompensa. Como se a
glorificação de todos os populares que ali foram fosse pouco, soube
posteriormente que algumas senhoras entusiasmadíssimas, também decidiram
festejar com alguns dos meus soldados de modo bastante mais íntimo. E viva a
Revolução!
E depois?
Tenho
agora, passados 40 anos, dificuldade em me lembrar como se passaram os dois
dias seguintes até ao dia 1 de Maio. Lembro-me de que fomos para o quartel da
Pontinha, onde ficámos aquartelados e pouco mais me lembro.
Lembro-me
de ter encontrado o meu cunhado, o Sanches Osório, e caímos nos braços um do
outro contentes por nos vermos do mesmo lado e vitoriosos!
Lembro-me
de ter ido a minha casa (os alferes
Martins e Fernandes também me acompanharam) para dar um grande beijo de
alívio e vitória à Isabel e outro aos filhos. Ela ficou horrorizada, porque
deixámos as metralhadoras que trazíamos na cadeira da entrada, como quem larga
a gabardine. E de facto com 3 filhos de 4 a 7 anos, poderia ter acontecido
alguma tragédia. Mas com o nosso entusiamo e porque aquelas ferramentas já se
tinham tornado parte de nós, facilmente esquecemos as mais elementares regras
de segurança.
Cabe
aqui uma pequena referência à minha Grande mulher da minha vida: a Isabel, sempre
me apoiou, apesar do medo que sofreu pela nossa família. E de facto o irmão da
minha sogra, foi preso por engano pelo COPCON e acabou por morrer por falta de
assistência médica na prisão, em Dezembro desse ano.
A
Companhia recebeu a ordem para controlar a zona da Baixa, no dia 1 de Maio,
pois ali – sobretudo no Rossio - se iriam verificar as maiores manifestações e
prováveis tumultos. Ainda estávamos numa cultura que nos dizia que se o povo
fosse deixado à solta seriam inevitáveis grandes problemas de ordem pública.
Nenhum
de nós tinha qualquer experiência policial para este género de eventos: qual
seria a melhor táctica? Como evitar abusos (assaltos a lojas, carteiristas,
etc…) com tão poucos soldados?!
Optámos
por nos dividirmos em vários grupos: um para cada canto do Rossio, mais dois ao
longo dos lados e os restantes (onde eu fiquei) no centro do Rossio, na base da
estátua do D. Pedro IV. Naturalmente que foi um dia agitado, um bocado de
nervos pois o Rossio estava completamente cheio de pessoas (não sei quantas
dezenas de milhares de pessoas seriam, mas estava completamente lotado!).
Apesar de todos os receios, tudo correu lindamente e na maior ordem. Foi
fantástico!
Recordo-me
de alguns episódios engraçados desse longo dia de festa da Democracia: talvez o
primeiro grande festejo em Democracia. Uma passagem divertida foi a descida da
Av. da Liberdade para chegarmos ao Rossio, pois estava tudo entupido com
automóveis que não conseguiam passar no Rossio: um engarrafamento louco; disse
ao condutor para ir para cima do passeio e assim descemos a avenida sem tocar
no alcatrão. Grandes vivas dos cidadãos presentes e os meus soldados entusiasmadíssimos
- não só pelo momento de glória, mas por estarmos a fazer uma coisa
extraordinariamente proibida: andar de carro por cima dos passeios. A segunda
coisa de que me lembro foi de um senhor já com alguma idade de boina (vim
depois a saber que era o Raul Rego) que veio ter comigo quando já estávamos no
meio do Rossio, muitíssimo comovido, agarrou-se a mim a chorar a dizer:
obrigado, obrigado, obrigado… durante uma boa meia hora, intercalando com
muitos ”viva a República!”. Na altura não percebi o alcance destes “vivas!”,
pois para mim a República era apenas um Regime não monárquico, que em Portugal
tinha oportunisticamente ganho o poder através de um regicídio e que pela sua
incapacidade tinha gerado as condições para que a ditadura tivesse depois vindo
a ganhar o poder; mas para ele e para muitos da sua geração seria um sinónimo
de democracia. Outra situação curiosa foi a de alguns jovens que gritavam
alguns slogans, mas ninguém os ouvia, propus-lhes que viessem para o pé de mim
(estava num ponto alto do pedestal da estátua) e emprestei-lhes o meu megafone,
que na altura já era desnecessário: passaram de um certo temor para uma enorme
alegria e aumentaram a produção, já de si grande, de slogans e vivas – eles
eram o futuro MRPP que, embora de extrema-esquerda, foram os únicos que se opuseram
á loucura gonçalvista no seu início.
Depois
deste dia de entusiasmo fomos mandados para casa e/ou para o quartel e, o
Pessoa e eu fomos para S. Margarida para pormos em ordem a região militar
Centro: eufemística forma de dizer que deveríamos “limpar” os quadros militares
dos que não eram afectos ao Movimento. No início não percebi completamente o
que andaria eu ali a fazer, mas o Pessoa sim, estava muito à vontade naquele
papel. Como eu pensava que a Revolução estava já ganha e consolidada não vi
razão para sanear ninguém que tivesse um mínimo de competência, só porque não
tinha apoiado objectiva e claramente a Revolução. Por este critério ter-se-ia
que sanear a maioria da população, que de facto nos apoiou entusiasticamente no
dia 26, mas que antes de 24, por medo ou comodismo, se manteve complacente com
o Regime. Opus-me portanto ao saneamento de muitos dos oficiais superiores da
região Centro (dentro deles o seu comandante – Morais?), só tendo concordado
com um caso de um coronel alcoólico que passou à reserva. Por isto fui mandado
para casa e depois, nós todos fomos para Angola, cumprir a nossa comissão.
Não
me alongarei neste memorial dos meus sentimentos nesta época tão rica de
acontecimentos, pois já vai muito longa, pese embora que faria sentido um
relato sucinto da ida e estadia da nossa Companhia em Angola, pois está cheia
de acontecimentos ligados e consequentes com a Revolução. Destes acontecimentos
só confesso que foi para mim uma honra e uma riqueza enorme ter sido o Capitão
da C. Caç 4246, durante a Revolução do 25 de Abril e depois, durante a nossa
comissão em Angola.
Tudo
o que relatei terá falhas importantes e até erros, só desculpáveis pelos 40
anos já passados. Deles peço desculpa e um bem hajam pelo que fizeram comigo e
apesar de mim.
Gostava
de ter braços suficientemente longos para vos abraçar a todos!
Não sendo para mim um documento novo por constar do meu livro " Passos de Revolta" pela honrosa participação do meu ilustre e saudoso Comandante Christian Andersen no mesmo, contudo e como o meu saudoso Comandante dizia, que 40 anos depois, outros factos a que eu não chamo falhas, socorri-me dos outros camaradas que naqueles dias tiveram a honra de engrossar uma Companhia com espírito contestatário à política do Regime de então, que me transmitiram outros acontecimentos ocorridos naqueles dias e que mais tarde o meu saudoso Capitão relembrou.
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