Faz, precisamente, 40 anos, que
tive como principal missão, durante a manhã do dia 25 de Abri de 1974, levantar
autos, por desonra e traição à pátria, a todos os meus camaradas, graduados, da Companhia
Independente Companhia de Caçadores 4246/73
A noite de 24 para 25 de Abril de 1974 não foi uma noite como todas as
outras, mas também não foi muito diferente. Todos nós ocupamos o nosso
tempo livre de forma muito igual ao dos dias anteriores: os sportinguistas a
verem o seu clube jogar para atingir as meias-finais de uma competição europeia
e os não sportinguistas a entreterem-se entre o cinema, a sala dos militares ou
uma saída fugaz até ao Tramagal ou mesmo Abrantes, as localidades
mais próximas de Santa Margarida, onde estávamos aquartelados a fazer o IAO -
Instrução de Aperfeiçoamento Operacional para uma missão em Angola. A
diferença começou a notar-se quando constatamos a presença do nosso comandante
e de todos os restantes oficiais da Companhia. Esta situação só era normal
quando se encontrava agendada uma qualquer instrução noturna, que não era o
caso. Porém, como a Companhia estava a preparar-se, em termos operacionais para
a guerra no ultramar, uma vez que estávamos mobilizados para
ir para Angola, podia ser razoável que se realizasse uma sessão
noturna, não prevista.
Cerca das 23h45 um dos
oficiais da companhia dirigiu-se à caserna, juntamente com alguns
dos futuros furriéis (na altura ainda Cabos Milicianos), acordando
todos os militares e informando-os que se tinham que preparar para uma sessão
operacional. Como era normal nestas ocasiões, assistiu-se a um burburinho muito
intenso e com muitas interrogações à mistura: “o que é que nos estará reservado
para esta noite ?” – a instrução nocturna era dos exercícios mais exigentes, não
apenas pela própria exigência do exercício, mas sobretudo pelos locais,
orograficamente muito desgastantes, que tinham que percorrer – A novidade nessa
noite foi terem recebido, juntamente com a G3 ( espingarda automática),
cartucheiras com bala real.
No meu caso e de mais meia dúzia de militares, que não tinham que acompanhar
estes exercícios operacionais, a noite só foi perturbada pelo natural
movimento e tenção que se notava em todos os nossos companheiros operacionais e
apenas até à sua saída para a suposta instrução nocturna.
O que restou da noite, para os não
operacionais, foi de uma total tranquilidade e sono profundo. De manhã, após a
alvorada, a nossa grande surpresa foi não termos notado qualquer
movimento ou ruído a partir da caserna. Achamos estranho os nossos camaradas
não terem regressado da instrução nocturna. Não era normal, mas nada fazia supor que
a razão era bem diferente daquela que acabou por se vir a verificar. Aquela
meia dúzia de militares, não operacionais, que ficaram no quartel, seguiram
a sua rotina normal, com o desfazer a barba, o banho e a toma do pequeno almoço
e, no meu caso, pelas 9 da manhã abrir a secretaria para dar inicio a mais um
dia de trabalho. Foi quando estávamos a tomar o pequeno almoço que tomamos
conhecimento do que se estava a passar. A televisão não deixava de passar
imagens das grandes movimentações militares em Lisboa e das intenções dos que
prepararam a revolução.
Embora não tivéssemos conhecimento da
presença da nossa companhia nesta revolução, percebemos que o facto de não
terem regressado da suposta instrução nocturna se podia estar a dever a
uma adesão ao movimento das forças armadas.
Pouco depois de ter aberto a secretaria,
chegou o meu chefe, Sargento Pinto, já com muita informação sobre o que estava
a acontecer. Foi nessa altura que tomei conhecimento de que a nossa Companhia,
comandada pelo Tenente Cristian Bastos Andersen, tinha aderido ao movimento e
tinha como principal missão evitar que os tanques do quartel de Santarém
passassem pela Ponte Marechal Carmona, em Vila Franca de Xira, rumo a Lisboa,
numa eventual contra revolução. Ficamos a saber que os tanques de Santarém
também tinham aderido ao movimento das forças armadas, deixando de fazer
sentido que a nossa companhia permanecesse em Vila Franca quando estava a ser
necessária numa outra tarefa, também ela muito importante, no aeroporto de
Lisboa, para onde se dirigiram ainda nessa manhã e onde estiveram durante três
dias a coordenar todas as ações do aeroporto.
Como o meu chefe era militar profissional
achou por bem que, para salvaguardar a sua posição de militar do quadro e no caso
do processo revolucionário ainda vir a falhar, se devia levantar autos a
todos e a cada um dos militares da Companhia, com funções de chefia, (graduados) que estavam a participar na
revolução. Ele, desse modo, ficava devidamente protegido perante as chefias,
embora, pessoalmente, concordasse com a ação que os capitães estavam a tomar.
Foi por isso que passei a manhã do dia 25 de Abril de 1974 agarrado a uma
máquina de escrever “Messa”, a escrever, nas legais folhas azuis de
25 linhas, um texto que em, síntese, apontava para a desonra e traição à
pátria de todos os meus camaradas graduados. Como depois se veio a verificar, foi um
trabalho inglório porque a revolução foi consumada e o meu chefe mandou-me
destruir os autos.
Na parte da tarde, quando já se sabia que não iria haver retrocesso no processo
do MFA, o meu chefe libertou-me e aproveitei para vir até ao Fundão. Era dia de
feira anual e, por outro lado, sentia uma natural curiosidade sobre como
estavam os fundanenses a viver o dia da libertação do nosso país.
Foi assim o meu dia, no dia 25 de Abril de 1974.
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